Um sopro de esperança
Um
Sopro de Esperança
Tiago da Costa
Era o início de uma manhã no outono do ano de 698. Quase sete séculos se passaram desde a Primeira Grande Batalha, quando os homens derrotaram os primeiros dragões, aos pés do Vulcão Kalintor. A importância do evento justificou a sua adoção como marco temporal para todo o continente.
O que não se imaginava é que a vitória, obtida pelos homens a um elevado custo de vidas e recursos, não resultaria na almejada paz sobre a terra. Ao contrário, o ressurgimento dos dragões, cinco séculos depois, daria início à guerra que perdura desde então, há quase duzentos anos, com perdas irreparáveis para ambos os lados.
Disposto a encerrar esse embate, Galendar cruzava, naquela manhã de céu avermelhado e ar seco, acompanhado apenas de dois outros combatentes, a última colina que o separava de seu destino: o Círculo das Cavernas Tayrif, um vale escondido entre os montes que o abraçavam, repleto de entradas que levavam para o interior das montanhas. Grutas com imensas aberturas, largas o suficiente para o ingresso de qualquer criatura gigantesca.
No centro desse cenário, rodeado por uma cadeia de rochas e vestíbulos, destacava-se o lago colorido por um azul intenso. O espelho d’água permanecia estático, como se não houvesse um único sopro de vento no local. No ar, apenas a tensão de quem sentia estar sendo observado.
Na frente dos demais, Galendar, o mago, desceu a colina em direção às águas. Seguido pela guerreira Alicia e por Dayon, o clérigo, percorriam, cautelosos, o declive, precavendo-se para que o cansaço da jornada não resultasse em nenhum passo em falso. Estranhamente, as pedras que rolavam colina abaixo, movimentadas a partir de suas passadas, não produziam nenhum som, assim como os galhos que se quebravam no caminho. O silêncio envolvia a todos, e parecia querer esmagá-los.
Alicia foi quem falou primeiro, às margens do lago:
— Como saber em qual caverna ele se esconde? — sussurrou enquanto lançava o olhar para cada uma das entradas. — Não devemos nos separar.
— Não precisaremos procurar — declarou Dayon, com o olhar fixo sobre as águas —, ele sabe que estamos aqui.
— Somos observados desde antes de cruzarmos a colina — explicou Galendar. — Jamais conseguiríamos surpreender um dragão elemental em seu território.
O silêncio fazia parecer que o tempo estava congelado à beira do lago, sensação que desapareceu quando todos sentiram um tremor sob os pés, como se um verme gigante rastejasse por debaixo deles, ao mesmo tempo em que as águas começaram a se agitar. Bolhas explodiram pelo espelho d’água como um caldeirão gigante. A temperatura fervente da água podia ser sentida mesmo sobre a superfície seca. A impressão era de que algo emergiria em instantes.
— Posição de combate — gritou Alicia. — Protejam-se!
O vento, antes ausente, agora soprava como vapor. Formou-se uma onda a partir do centro do lago, por trás da qual se materializou o dragão que, de tão imenso, projetou sombra sobre todo o grupo. As escamas grossas e claras, quase brancas, sobre o peito, tinham o tamanho de um escudo longo. A sua coloração ganhava um tom de azul escurecido à medida que compunham o dorso, até ficarem quase negras nas pontas das asas. As garras e olhos eram pretos como a noite profunda.
A criatura encarou os aventureiros sem emitir nenhum som, e a luz intensa que se formava em sua garganta anunciava o que estava por vir.
— Resistam comigo — bradou Galendar, lançando um escudo mágico sobre o grupo. Uma redoma dourada com contornos esverdeados surgiu a partir do solo e abraçou os três como uma concha, embaixo da qual todos mantiveram posição defensiva. O mago, com as mãos abertas apontadas para frente, conjurava a energia necessária para manter a magia que, se esperava, os manteria vivos.
Simultaneamente à conjuração da proteção arcana, o brilho escarlate da garganta do dragão subiu em direção à boca e explodiu sobre os aventureiros. Uma baforada de fogo contínua se chocou contra o escudo, espalhando-se sobre ele, sem, contudo, atravessá-lo.
A avalanche de chamas pareceu interminável, levando Galendar a duvidar que conseguiria resistir àquele inferno. Até que o ataque cessou.
A redoma continuou brilhante, ativa, mas ninguém abandonou a posição de defesa. O dragão caminhou até a margem do lago, como se os pés tocassem o fundo, e sentou-se sobre uma rocha. Abandonou a postura de combate e, fitando o grupo, falou pela primeira vez:
— Vocês conseguiram me impressionar. Poucos são capazes disso — a voz era grave, mas baixa. Falava com a calma de quem não precisava gritar para se impor. — Agora têm a minha atenção.
Galendar dissipou o escudo. Apreensivo, fitava o desafiante, consciente de que as próximas palavras poderiam deter a guerra ou arrastá-la por mais um século. Deu dois passos à frente e iniciou:
— Viemos negociar, Gondrax. Falamos em nome do Rei e queremos estabelecer uma trégua duradoura. Trago uma proposta para que homens e dragões possam conviver em relativa harmonia.
Sem levantar-se da rocha, o dragão ergueu o corpo enorme e passou a cabeça sobre os aventureiros, como se os observasse a partir de uma torre. Era possível sentir sua respiração como o vento do litoral, quente e demorado. O dragão parecia apreciar os momentos de silêncio prolongado, ao contrário dos cavaleiros, que controlavam a tensão.
— Os humanos buscam a harmonia? — perguntou incrédulo. — Você me surpreendeu de novo.
— A guerra já ocasionou perdas o bastante, Gondrax — Dayon assumiu a fala. — Todos tivemos baixas importantes que precisam cessar. A manutenção dessa guerra é uma derrota generalizada.
— Pareço derrotado aos seus olhos, clérigo?
— Os dragões também perderam muito — Dayon deu uma pausa antes de continuar —, você especialmente.
— Você não é capaz de compreender o tamanho da minha perda — respondeu olhando para o espelho d´água, sem alterar o tom de voz.
— Eu posso, Grande Dragão — disse Alicia —, perdi meu único filho no campo de batalha. Eu conheço a dor de continuar numa guerra sem ter mais pelo que lutar. Viver todos os dias desejando que seja o último.
Gondrax encarou a guerreira em silêncio. Enquanto a observava, atento, deduzia que as cicatrizes sobre a pele negra de seus braços e pescoço desenhavam a história de alguém que nunca se permitiu desistir. Ela permaneceu parada, aguardando uma resposta, enquanto ele considerava as próximas ações. Um tentando compreender a profundidade das perdas do outro.
— O seu filho morreu lutando. Os meus, morreram enquanto dormiam, vítimas de um ataque à nossa morada enquanto eu estava fora — a fala de Gondrax soava como um trovão. — Consegue dimensionar o quão covarde é necessário ser para orquestrar um ataque a um ninho onde havia apenas filhotes?
— Não tentarei justificar isso...
— Então não tente — interrompeu com uma voz que retumbava rancor.
— Mas eu vi famílias inteiras morrerem queimadas nos ataques que sofremos. Os ataques dos dragões eram devastadores. Todas as vezes que vocês sobrevoaram os castelos, despejando o inferno sobre as nossas defesas, não foram apenas soldados que pereceram. Nós enterramos crianças que não conheceram o lado de fora das muralhas. Morreram sem entender por que viveram se protegendo.
— Há uma diferença entre a investida sobre uma base e um ataque sorrateiro a filhotes.
— Para as crianças atacadas não há. Apenas o fim da linha se apresentando de forma implacável e antecipada. Eu sei que o lar deixa de fazer sentido sem os filhos que deveriam dormir nele todas as noites. Carregar essa dor por décadas deve alimentar um desejo de vingança insaciável, Gondrax, mas talvez uma trégua possa trazer o conforto que você já se esqueceu que precisa.
O dragão fez um instante de silêncio. A observação de Alicia o havia tocado.
— O mago disse que pretendem negociar... pois, prossigam — ordenou enquanto olhava para um ponto fixo no céu.
— Podemos enviar uma mensagem que atinja os dragões e humanos espalhados por todo o continente — explicou Galendar —, um sinal de que construímos uma trégua, um gesto inequívoco de que aspiramos por tempos de paz.
— Parece que vocês querem levar minha cabeça para exposição em praça pública — provocou.
— Queremos o seu coração, Gondrax — anunciou o mago. — O plano é levar a Pedra Coração para o Reino, apresentando-a como uma oferta dos dragões aos humanos para inaugurar um novo tempo de paz.
— Você tem a minha atenção — disse hesitoso —, continue.
— Todos os homens conhecem a lenda da Pedra Coração, o fragmento de rocha vulcânica que carrega o sangue dos primeiros dragões elementais. O único registro da sua passagem pelo continente. A História conta que a Primeira Grande Batalha foi encerrada aos pés do Vulcão Kalintor, quando se pensou, equivocadamente, que os dragões haviam sido extintos.
— Por que você acredita que a Pedra Coração promoveria uma trégua, séculos após a sua descoberta?
— A Pedra foi retirada da lava solidificada do Vulcão, anos após a erupção, e os dragões que o fizeram conseguiram concentrar naquele material o poder mágico de seus ancestrais, transformando a rocha em um artefato capaz de reunir todos os dragões vivos e conduzi-los, sob a liderança de quem a possuir, em direção a um objetivo comum.
— A partir da sua análise, quem possuir a Pedra Coração seria uma espécie de...
— Comandante de todos os dragões vivos! Impossível imaginar uma posição de maior prestígio em qualquer época. A joia mais preciosa de que já se teve notícia, entregue por seu guardião, o dragão elemental mais antigo, aos homens, como símbolo de um acordo baseado na confiança.
— Há um ponto intrigante no seu plano. Como estudioso da magia e da história das espécies, você sabe que a Pedra Coração só surtiria efeito se utilizada por um dragão, caso contrário, eu jamais permitiria que fosse alcançada pelos humanos.
— Eu sei disso — Galendar esboçou um discreto sorriso —, entretanto ninguém mais, além de nós, aqui presentes, saberá. Se existe algo tão poderoso quanto à Pedra Coração é o imaginário em torno dela. A ideia da entrega dessa responsabilidade aos cuidados dos homens vai sustentar a sua confiança em relação aos dragões pelos próximos tempos.
— Você me surpreendeu pela terceira vez hoje, mago — Gondrax parecia respeitar seus interlocutores —, mas como você sabe que o artefato que entregarei aos seus cuidados será, de fato, a Pedra Coração? Nenhum humano jamais pousou os olhos sobre ela, e mesmo a sua magia não será capaz de decifrá-la.
— Por que os homens temem os dragões, mesmo a maioria nunca tendo visto um? A resposta é porque nós tememos o que vocês representam. Todo homem desejaria ter a força, longevidade e sabedoria dos dragões. Toda criança cresce ouvindo histórias sobre o quão grandiosas são essas criaturas e sobre quantos soldados seriam necessários para se ter alguma chance de vencer uma única delas em combate. Tememos os dragões porque eles são aquilo que mais se aproxima do conceito de perfeição que concebemos.
Galendar fez um instante de silêncio antes de prosseguir:
— É a fé no significado da Pedra Coração que manterá vivo o nosso tratado. Enquanto os homens acreditarem que são merecedores do respeito dos dragões, honrarão um acordo de paz.
Um pacto foi selado naquela manhã e o grupo retornou ao Reino, levando consigo um artefato que nunca saberiam ser, de fato, falso ou verdadeiro.
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