Sorte no jogo
Sorte no jogo
Tiago da Costa
Os ponteiros do relógio marcavam quinze horas quando o inspetor de bilhetes soou o apito, anunciando a saída do trem, enquanto conferia o fechamento das portas dos vagões. A locomotiva começou a se mover sobre os trilhos, lançando uma fumaça negra que contrastava com o céu sem nuvens. Quem ficava na estação acenava em despedida para aqueles que partiam.
Desviando-se de malas e passageiros, em um passo apressado, uma mulher cruzava a plataforma, olhando para trás a todo momento. Caminhava rápido, tentando achar um lugar para se esconder, antes que fosse alcançada por seus perseguidores.
— Senhor, me ajuda, por favor! — pediu a um homem sentado em um banco de madeira cumprido. — Eles vão me pegar.
O homem, que parecia aéreo em seus pensamentos, foi rápido na resposta. Abriu uma trouxa de pano, que carregava amarrada a um pedaço de pau, retirou dela um chale branco e entregou à jovem.
— Vista isso e fique debaixo do banco. Ninguém vai te ver.
— Isso é loucura. Como pode ser? — respondeu confusa, segurando a peça de roupa, e sentindo que seria capturada a qualquer momento.
— Você sabe o porquê de ter pedido ajuda justamente a mim. — As pessoas começavam a se agitar e um grupo parecia se aproximar. — Não perca tempo.
Resignada e ainda sem entender por que fazia aquilo, ela jogou a vestimenta sobre as costas, se agachou e entrou debaixo do banco. Percebeu que havia um cão dormindo ao seu lado. O pelo caramelo era cortado por uma listra branca incomum, que seguia da cabeça até o início da cauda. O animal transparecia uma tranquilidade pela qual a fugitiva foi tomada.
Na sequência, dois policiais passaram lentamente ao seu lado. Um deles chegou a agachar e olhar na sua direção, mas não a enxergou. O vira-latas deu um latido baixo e curto, sem se levantar. Os guardas, desorientados, seguiram adiante.
— O que foi que aconteceu aqui? — A jovem deixou seu esconderijo quando teve a certeza de que não era mais perseguida. — Como você fez isso?
— Você está bem, senhorita?
— Minha nossa, desculpa. Antes de qualquer coisa, preciso te agradecer. Você me salvou! Prazer, sou Flora! — disse estendendo a mão e devolvendo a peça de roupa.
— Oi, Flora! Eu achei que poderia te encontrar aqui. Na verdade, se você fechar os olhos, vai lembrar que também me conhece.
— Você é familiar. Eu me lembro do seu rosto, mas... Meu Deus! — a mulher levou as mãos à boca e precisou se sentar para completar a fala. — Você apareceu nos meus sonhos! Como pode ser?
— Hoje eu vim aqui para te encontrar. Você tem me chamado há muito tempo. Eu te escuto quando me procura nos jogos de cartas e falo contigo quando consegue dormir.
— Sim! Agora eu me lembro. O seu rosto claro, os cabelos compridos, o olhar contemplativo que aparece nos meus sonhos. Em um impulso ela deu um abraço no seu salvador. — Mas de onde você vem? Por que veio até aqui?
— Acho que o motivo está na sua cara. — A estação começava a ficar vazia, com a partida do último trem. — Ontem, enquanto chorava e jogava as cartas naquele quarto escuro, você disse estar desesperada, e que precisava de uma orientação sobre o que fazer.
— Ele me acusou de ter roubado o dinheiro dele depois que saí de casa. O desgraçado ainda teve a coragem de chamar a polícia. — Flora limpava as lágrimas e falava entre soluços. A maquiagem borrada perdia a função e começava a revelar a marca roxa no olho direito que deveria ocultar. — Nunca pensei que Agenor fosse capaz disso.
— Pensou sim. Por várias vezes perguntou às cartas se sua vida iria mudar. Se seu marido iria mudar. Você sabia que isso aconteceria desde a primeira vez que ele gritou com você, na viagem para a praia.
Flora passava as mãos sobre os olhos e já não tentava conter as lágrimas.
— Você é mesmo o Arcano Zero, não é? O Louco do baralho de tarot que me visita nos sonhos. — A mulher olhou para os lados, como se tentasse encontrar alguém para validar aquela conversa, garantindo para si que a louca não era ela. — Me conte o que é você?
— O tarot não é apenas um baralho místico para uso divinatório. É um mundo, uma realidade que existe paralelamente a este plano que você conhece.
— Todos os arcanos existem de verdade? — Flora falava com a expressão de uma criança que vê a chuva pela primeira vez. — A imperatriz, o mago, a lua, a justiça... Tudo isso é uma realidade paralela?
— Existem portais que fazem uma ligação direta entre diversos mundos. Cheguei aqui através de um deles. — O cachorro havia se sentado ao lado do Louco, como se apreciasse toda a explicação. — É assim que posso transitar fisicamente entre realidades diversas.
— Há outro jeito de fazer a viagem?
— Através dos sonhos daqueles que me procuram. É como se eu tivesse um bilhete de acesso para o inconsciente das pessoas. O mundo do que não é dito do lado de fora.
— Estou encantada! — falou acariciando o cachorro. Inclusive com seu fiel companheiro. Uma simpatia!
— Companheira! Brincou com o focinho da cadela. — Esperança me acompanha desde sempre. Não nos separamos jamais.
Flora acariciava as orelhas da cachorrinha, que respondia ao carinho virando a cabeça.
— Você acha que ainda posso ter esperança no meu casamento?
— Não dá para receber amor de quem só tem violência para oferecer. Se você esperar uma mudança nas atitudes de Agenor para encontrar a sua própria felicidade, será sempre uma passageira aguardando o trem na estação errada.
— Parece que eu sou a louca aqui, não é? — ambos esboçaram um sorriso improvável no meio da conversa tensa.
— Tenho a fama de dar respostas imprevisíveis para os que me procuram. Meus aconselhamentos costumam ir numa direção que foge do óbvio. Mas não no seu caso.
— Como assim?
— Saia de casa, Flora. Não encontre mais com esse homem. É um absurdo que em meados do século XX as leis ainda não sejam duras o suficiente contra quem pratica esse tipo de covardia. Essa realidade vai melhorar nas próximas décadas, mas, por ora, você precisa se distanciar.
A mulher olhava para baixo, sentada com os cotovelos sobre os joelhos e os dedos entrelaçados.
— Eu não devia ter deixado ele me afastar de todo mundo. Eu tinha boas amigas quando começamos, mas ele assustou todas elas. Eu permiti isso.
— Eu tentei te mostrar o caminho que se formava quando você lia as cartas do tarot, mas, no fim das contas, a dona do seu destino sempre será você mesma.
— Tenho coisas importantes que ficaram na nossa casa. Estou escrevendo um livro, há anos, e não posso correr o risco de que ele destrua tudo, apenas por vingança. Além disso, tenho um dinheiro escondido no porão. Preciso pegar antes de deixá-lo de vez.
— Você precisa de um plano. — Os dois andavam pela plataforma vazia, enquanto Esperança os seguia balançando o rabo. — Ele te derrubou usando a força bruta. Agora, você precisa virar o jogo usando a inteligência.
O Louco sentou-se no degrau de uma escada e começou a desatar o nó da sua trouxa de pano. Abriu um pouco, de forma que não era possível que Flora enxergasse o que havia dentro, e começou a retirar objetos.
— Trouxe algumas coisas que podem ser úteis para você — entregou o conhecido chale branco. — Não precisa devolver.
— Um pouco de discrição pode ajudar mesmo.
— Por vezes a memória nos trai — disse pegando um livro —, então anotei nesse diário algumas coisas importantes que você me revelou enquanto dormia, ao longo dos últimos meses. Leia antes de tomar qualquer decisão.
— Isso é fascinante! Consigo me lembrar — Flora passava os olhos, extasiada, pelas primeiras páginas da obra.
— Este aqui tem aparecido bastante nos seus sonhos — retirou uma caixa de madeira com detalhes dourados.
— Você carrega algum tipo de bolsa de espaço infinito? — perguntou sem entender como havia tanta coisa dentro de uma trouxa tão pequena.
— Tenho meus truques — respondeu com um sorriso tímido. — Poderia dizer que cabe o mundo aqui dentro. Você sabe o que tem nas mãos?
— Não acredito! — abriu o recipiente e viu seis bombons, encaixados sobre fôrmas de papel em formato de flor. — O cheiro é indescritível, exatamente como nos meus sonhos!
— Você se lembra por que desejava os doces?
— Claro que sim — respondeu séria, fechando a caixa. — Acho que tenho o suficiente agora.
Os dois se despediram. Flora esperou o início da noite e voltou para casa. Chegando na calçada, percebeu que Dona Sônia, a moradora da casa da frente, que passava o dia inteiro na varanda, estava sentada, observando a rua.
Flora, que pretendia ser discreta, vestiu seu chale e, invisível, passou em frente à mulher que vigiava os movimentos dos vizinhos. Abriu a porta com cuidado e entrou em casa sem chamar atenção.
Na tarde do dia seguinte, Dona Sônia se surpreendeu com a chegada de uma ambulância e carros de polícia na rua. Os policiais ficaram algumas horas no interior do imóvel de Agenor, recolheram objetos e retiraram o corpo do homem, coberto por um saco plástico.
Os moradores próximos foram interrogados, mas ninguém havia visto nada de estranho na noite anterior. Dona Sônia, quando procurada, afirmou convicta que ninguém, além do próprio Agenor, tinha estado na casa no dia anterior.
— Se alguém tivesse entrado ou saído do local eu teria visto – confirmou orgulhosa. — Estou sempre alerta.
As notícias deram conta de que Agenor foi encontrado sem vida, caído no chão da sala. Sobre a mesa de jantar havia um prato de comida, uma garrafa de vinho vazia, uma caixa com cinco bombons e um baralho de tarot. Desviradas, podia-se identificar as cartas do julgamento, da morte e do louco. Os investigadores levantaram a hipótese de envenenamento, mas não encontraram nada conclusivo. Sequer tinham um suspeito ou testemunhas. Um mal súbito era apontado como a causa mais provável para o ocorrido.
— Uma última questão, Sra. Sônia: aquele cachorro está parado na porta desde que chegamos. Ele é do antigo morador? — quis saber o investigador.
— Aquele listrado de branco? Nunca vi por aqui.
Antologia "O Arcano Zero, a Jornada do Louco" (Cartola Editora, 2025).

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