A noite que não terminou
A noite que não terminou
Tiago da Costa
Os estalos da lenha queimando e o borbulhar da água fervente nos caldeirões eram tudo que se ouvia no laboratório. Entre frascos de vidro e recipientes de metal, Alina se debruçava sobre suas anotações, tentando compreender o efeito de algumas ervas na cura de uma nova febre que atormentava os moradores do vilarejo.
—
Professora Alina — um jovem de roupas velhas e olhar curioso interrompeu a
estudiosa —, Bogdan está convocando todos para uma reunião.
A
mulher clara, de olhos puxados e semblante sério, passou as mãos sobre o rosto,
abaixou a cabeça e pensou o quanto era inconveniente a realização de um
encontro no exato momento em que, todos sabiam, ela estava empenhada na
realização de um importante experimento.
—
Bogdan nunca pode esperar, não é verdade? — falou para si, depois de pegar o
casaco cinza sobre a cadeira e amarrar os longos cabelos brancos. — Irei em um
minuto.
Colocou
um cachecol para enfrentar os quatro graus que faziam do lado de fora e seguiu
para o salão de eventos.
O
dia estava escuro. Não como uma manhã nublada, mas como a própria noite. O ano
é 537 d. C. e o mundo foi envolvido por uma cortina de trevas há quase dezoito
meses, que não se dissipou. Sem a luz solar ou o brilho da lua, a agricultura ficou
severamente prejudicada. Os animais ficaram fracos e os humanos foram
acometidos por doenças desconhecidas.
Não
se sabe o que provocou a escuridão que tomou conta da Europa, do Oriente Médio
e de parte da Ásia. Há quem acredite que foi resultado de uma sequência de
erupções vulcânicas. Outros atribuem o fenômeno às mudanças climáticas, que resultaram
na formação de nuvens negras que tomaram os céus. Nenhuma teoria, entretanto,
foi capaz de explicar o aparecimento das criaturas que chegaram junto com a
noite perpétua.
Aqueles
que viveram nessa fase da Idade Média tiveram na privação de comida e no
desconforto térmico o menor de seus problemas. A escuridão absoluta, que chegou
com a noite sem fim, permitiu que criaturas sombrias, antes presentes apenas nas
lendas populares, andassem sobre a terra e ocupassem territórios. Os vampiros
foram o maior pesadelo da humanidade nesse período da história.
Alina
era uma sobrevivente no mundo sem sol. Conhecia o poder devastador das
criaturas da noite e carregava na memória marcas de um ataque do qual escapara
viva por muito pouco.
Nas
primeiras semanas da noite perpétua, o vilarejo de Bravênia, localizado em um
conjunto montanhoso na região conhecida por Transilvânia, foi invadido por um
grupo de vampiros. Foi um massacre. Os monstros eram extremamente rápidos e
precisos em seus ataques. Metade da comunidade foi assolada. Alina assistiu,
incrédula, quando o assassino investiu sobre seu filho em um golpe fatal,
cravando as presas no pescoço do rapaz, que caiu sem chance de reação. Ela só
não teve o mesmo fim porque foi colocada, contra a vontade, em um porão por
outros moradores, antes que fossem vistos.
Mais de um ano após a tragédia, a comunidade se fortaleceu. Os homens treinaram incessantemente para combater os vampiros em um futuro enfrentamento. Bogdan, um dos sobreviventes, tornou-se o chefe do vilarejo, exercendo uma controversa liderança desde então. Alina, além do treinamento para combate, dedicou-se aos estudos da natureza. A respeitada professora, que ensinava sobre a história das civilizações até o início da noite perpétua, agora se dedicava ao estudo das ciências naturais, buscando elementos que fossem eficazes no combate aos vampiros.
—
Chegaram notícias de que seremos atacados em breve — Bogdan falou de pé, com as
mãos apoiadas sobre a mesa de pedra. — Nossos caçadores perceberam vultos se
movimentando pelas montanhas, cada vez mais próximos de nós. Precisamos que
todos estejam prontos para um confronto.
A
reunião acontecia em um salão de madeira no centro do vilarejo. O local, antes
destinado a celebrações, passou a ser utilizado como uma base para planejamentos.
Bogdan, homem de porte robusto, pequenos olhos negros e cabelos brancos e curtos,
olhava para todos enquanto anunciava sua estratégia. Alina e outros cinco
moradores presentes compunham o conselho do vilarejo de Bravênia.
—
Ainda temos um considerável número de doentes — Alina falou a partir de sua
cadeira. — É imprescindível pensarmos uma forma de escondê-los com segurança
antes da próxima investida das criaturas.
—
Achei que você já teria desenvolvido medicamentos a essa altura — falou Bogdan,
enquanto andava pelo salão.
—
É a isso que dedico todo o meu tempo. Não é simples fazer ciência nas condições
em que nos encontramos. Apesar disso, muita gente se recuperou utilizando os
remédios que desenvolvi.
— Não é suficiente, Alina — Bogdan interrompeu —, você pode fazer mais.
A professora precisou respirar profundamente para não ser agressiva demais na resposta.
— Bogdan, você consegue se ouvir? É para mim mesmo que está sugerindo mais esforço? — Levantou-se, olhou nos olhos de seu interlocutor e falou com a voz firme: — Os vampiros tomaram tudo o que eu tinha nessa vida. Ainda assim me dedico a encontrar uma resposta para o inferno sombrio que nos assola por todo esse tempo. Acho que você não consegue compreender a complexidade do meu trabalho.
—
Todos perdemos, professora — Bogdan falava com um tom frio —, de diversas
maneiras. Sua dor não é maior que a dos demais. É preciso superar e seguir
adiante.
—
Não tente me aconselhar sobre assuntos e dores que você desconhece. — Alina
ardia em raiva por perceber que seus olhos estavam vermelhos e esforçava-se
para conter uma lágrima inconveniente que se formava. — Insisto: como
protegeremos os doentes e os idosos?
Bogdan
apoiou as mãos na mesa novamente e olhou para cada um dos conselheiros, como se
buscasse apoio para o que estava prestes a dizer.
—
Não vamos proteger ninguém. Vamos apenas lutar e nos defender. Bravênia não
pode mais gastar tempo e recursos preciosos adiando o inevitável.
—
O que você está dizendo? — Alina se levantou, exaltada, encarando os demais. —
Vocês permitirão isso? Essa decisão nos torna piores que nossos inimigos. Não é
possível que ninguém enxerga o óbvio.
—
Você não compreende as estratégias de combate e de sobrevivência, professora —
Bogdan falou, enquanto o conselho o ouvia de cabeça baixa. — Fazer alguns
sacrifícios agora vai nos tornar um grupo mais forte para resistirmos ao que
está por vir. Volte para seus estudos e nos ajude no que puder ser útil.
Prepare-se para o ataque iminente.
Indignada,
Alina enfatizava o absurdo que estava sendo decidido naquela reunião, mas
Bogdan deu as costas e a deixou falando sozinha. Os conselheiros, visivelmente
envergonhados, saíram, calados, depois do líder.
Dois
dias se passaram sem que nada acontecesse no vilarejo. Alina aproveitou o
período para estocar o máximo de medicamentos possível em um local seguro e
planejar uma rota de fuga, caso o ataque vampírico fosse devastador nas proporções
que se esperava.
Foi
no terceiro dia – ou noite – que a morte voltou aos domínios de Bravênia. O
sino começou a badalar anunciando o perigo. Tochas e fogueiras foram acesas.
Todos os homens em condição de lutar empunharam suas espadas e lanças e permaneceram
em seus postos, na expectativa de que os troncos de madeira dos portões
resistissem à investida das criaturas da noite.
Um
silêncio aterrorizante tomou conta do lugar. Era quase possível ouvir o coração
acelerado dos moradores, pressentindo o ataque que se aproximava. Até o cheiro
do ar estava diferente naquele momento, o simples ato de respirar era mais
cansativo, como se o oxigênio chegasse devagar até os pulmões. “Então é este o
odor da morte”, Alina pensava, segurando a lança com firmeza.
Enquanto
todos direcionavam o olhar para os portões, o primeiro ataque chegou pelos
céus. Iluminados pela luz das tochas espalhadas pelo vilarejo, seis vultos
saltaram os muros e avançaram sobre os combatentes. A velocidade dos ataques
era sobrenatural. Os homens mal conseguiam enxergar as criaturas. Seus ataques
eram como linces que derrubavam a presa com um golpe certeiro e partiam
rapidamente para o próximo alvo.
Após
derrubarem uma dezena de homens com ataques furtivos, os vampiros desapareceram
na escuridão mais uma vez. O silêncio tomou conta de tudo novamente. Todos
tinham a certeza de estarem sendo observados, mas não conseguiam localizar seus
algozes. A angústia de esperar a próxima investida era pior que a própria
morte.
Um
grito de desespero quebrou o silêncio. Um novo cerco estava em curso. Mais que
um ataque orquestrado, o que se passava ali era uma espécie de dança da morte
em que os vampiros se deliciavam com o desespero das vítimas.
Após
tentativas fracassadas de atingir as criaturas, os moradores começaram a buscar
um lugar seguro para se abrigarem. Alina rastejou até o depósito onde havia
guardado os medicamentos. Pegou duas sacolas carregadas com o máximo de
remédios e insumos que conseguiu e correu em direção a uma casa onde sabia que
um grupo de idosos e de crianças estava escondido. Convenceu a todos que
precisavam sair de Bravênia imediatamente.
O
grupo de quase quinze pessoas deixou a casa pelos fundos em direção a uma saída
pouco utilizada no vilarejo. Perto da passagem que dava acesso ao lado de fora,
um vulto bloqueou o caminho. Apesar das sombras, dava para perceber que
carregava um machado de combate.
—
Não precisamos de covardes aqui — Bogdan anunciou, saindo da penumbra —, mas
vocês não levarão nada. Deixem tudo no chão e desapareçam.
—
Essas pessoas estão fragilizadas, Bogdan — Alina argumentou. — Sem remédios e
comida não durarão dois dias do lado de fora dos muros. Precisamos sair agora
para ter alguma chance de estabelecer acampamento longe do alcance dos vampiros
e reconstituir nossas forças.
—
Eles sairão daqui sem nada, professora. Não me interessa se sobreviverão. —
Bogdan segurou o machado em posição de ataque e caminhou em direção a Alina. —
Mas a sua traição é imperdoável. Bravênia ficará melhor sem você.
Alina
caiu no chão ao dar o primeiro passo para trás. Bogdan, tomado pela fúria,
levantou o machado acima da cabeça, decidido a dar o golpe fatal. Foi sua
última ação antes que um predador aparecesse por trás de suas costas e
dilacerasse seu pescoço com uma adaga.
O
grupo, desesperado, atravessou a passagem no muro e correu para fora do
vilarejo. O vampiro, parcialmente encoberto pelas sombras, caminhou até Alina e
lhe estendeu a mão. A mulher não acreditou no que viu quando a luz das tochas
revelou o rosto do jovem magro de pele pálida, cabelos ruivos encaracolados, olhos
castanhos e presas brancas.
—
Meu filho! — As lágrimas desceram imediatamente. — Eu lamento todos os dias não
ter conseguido te proteger naquela noite. Como é possível você estar vivo? Eu
vi aquele monstro te atacar.
—
Eu nunca fui para longe — a fala do jovem era serena, nada emotiva, ao
contrário da mãe —, observo você todos os dias desde a minha partida. Vamos
embora daqui. Não há nada que te prenda a esse lugar.
—
Espere, eu ainda preciso entender muita coisa — falava, confusa. — Você se
tornou um vampiro, que se alimenta de pessoas e devasta vilarejos. Como pode
viver assim?
—
Você está cercada de pessoas que subjugam todas as demais que não lhes pareçam
importantes. O chefe de Bravênia, apoiado pelos seus, decidiu lançar à morte os
moradores que mais precisam de ajuda. Os humanos também são monstruosos, porém
fracos. — Sorriu pela primeira vez e olhou profundamente nos olhos da mãe. — É
melhor reinar nas sombras, assumindo nossa condição de predadores, a viver um
teatro de falsos valores sob o manto da condição humana.
—
Qual o seu plano para nós? — perguntou Alina.
—
Venha comigo, minha querida mãe — disse, abrindo os braços. — Temos toda a
imortalidade pela frente e um mundo inteiro para conquistar.
Mãe e filho, caminhando lado a lado, deixaram o vilarejo. Ninguém mais morreu naquela noite e nunca mais se ouviu falar de Bravênia.

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