A coroa de sangue e prata
A coroa de sangue e prata
Tiago da Costa
Alice acordou assustada com o som da chuva. Foi até a janela do quarto e observou do segundo andar a enchente que se formava. Sentiu medo. Os canais de previsão do tempo haviam preparado a população para a chegada do temporal daquela noite, mas ainda assim o volume de água que caía do céu parecia maior do que o esperado. Ninguém conseguiria dormir.
Um relâmpago iluminou o céu, revelando a formação ameaçadora das nuvens. Alice tapou os ouvidos, pressentindo o estrondo que estava por vir. Foi como canhões disparados da sala. A casa tremeu, objetos vibraram e, a julgar pelo barulho vindo do andar de cima, caixas caíram no sótão.
Temendo pela conservação dos quadros que pintava, a garota saiu do quarto, mas percebeu que a casa estava sem energia. Orientando-se apenas pela luz do luar e o clarão dos raios, baixou a escada que descia do teto e foi até o último andar. Seus quadros tinham caído, mas algo a mais lhe causava estranheza. Um espelho, encostado no canto da parede, refletia uma luz artificial, incompatível com a pouca claridade que revelava o cômodo.
Alice virou o móvel para si e notou que a sua superfície estampava imagens borradas de um cenário sombrio: uma floresta seca pela qual andava um coelho negro, que usava cartola e carregava um relógio no pescoço. Quando percebeu que estava sendo observado, parou e encarou a garota.
O animal começou a fazer um sinal discreto, como se tentasse dizer algo. Alice chegou ainda mais perto, mas tropeçou, indo de encontro ao vidro. Seria um acidente terrível, mas ao invés de chocar-se com o espelho, a garota atravessou sua superfície.
No instante seguinte seus pés pisavam sobre uma poça d’água. Não como as que se formam nas ruas após a chuva, mas como uma parte permanente de um cenário pantanoso. Alice se viu em uma trilha lamacenta em meio a um bosque de árvores mortas. O tempo estava nublado, sem nenhum sinal de sol, como se a claridade tivesse morada permanente atrás das nuvens cinzas.
A garota decidiu seguir pelo que parecia ser o único caminho possível. À medida que o percorria, tinha a impressão de que a trilha ficava mais estreita. As árvores, espectadoras discretas, pareciam movimentar suas raízes para fechar um cerco sobre a aventureira.
Após longa caminhada, Alice chegou até um descampado e sentou-se sobre uma pedra. Seus pés doíam e os pensamentos começavam a ficar
confusos por conta do cansaço. Sentindo-se sufocada pela mata, a garota considerou seguir adiante, mas percebeu que não estava sozinha.
Dezenas de olhos avermelhados se escondiam por detrás dos galhos retorcidos. O ar estava carregado de tensão e Alice pressentia que os predadores aguardavam seu primeiro passo em falso para lhe transformar em jantar.
Temendo o ataque iminente, enquanto buscava uma saída, percebeu, pousados sobre a pedra, um par de olhos diferentes, esverdeados, com formato menos ameaçador que os demais. Olhos felinos grandes, arredondados, atrás dos quais um corpo peludo listrado se materializou.
Um gato grande, de sorriso debochado, fitava a menina:
— Nunca te vi por esses lados — disse enquanto alisava os longos pelos do bigode. — Para onde vai?
— Não sei. Estou perdida.
— Nesse caso, tanto faz. — O animal flutuou, pairando no ar a um palmo do rosto de sua interlocutora. — Qualquer caminho servirá.
— Preciso voltar para casa — disse com o olhar triste. — Tenho medo.
— Eu também teria se estivesse prestes a ser devorado pelos cães da noite. — Fez uma pausa enquanto observava os pontos rúbeos que os cercavam. — Eles destroçariam uma pessoa em segundos. Triste fim.
— Consegue me ajudar, Sr. Gato? — perguntou, impaciente. — Ou está aqui apenas como espectador?
— Vou ajudá-la, mas vai precisar confiar em mim — propôs, abrindo um largo sorriso e exibindo seus grandes dentes brancos.
— Justo. Até porque não tenho escolha.
O gato lambeu o rosto de Alice em um movimento rápido. Como efeito imediato, ambos começaram a assumir uma forma etérea até desaparecer por completo. Nesse momento, dezenas de cães negros, de olhos vermelhos e presas expostas, saíram da escuridão. Agitados, latiam e cheiravam o chão, mas não farejaram nada. A invisibilidade funcionara de verdade.
Alice não tinha controle sobre seu corpo. Sentindo-se como uma névoa carregada pelo vento, a garota cruzou rapidamente a floresta, sem despertar a atenção dos répteis e dos felinos pelo caminho.
A viagem terminou quando atravessaram uma parede de raízes espinhosas, que estabelecia os limites do bosque. Após a barreira, a dupla se viu em uma estrada de pedras mais larga do que a trilha por onde começaram. Retomaram as formas originais e seguiram caminhando.
Desbravaram um vale que lembrava um cemitério, onde o odor da morte impregnava o ar e uma infinidade de ossos se espalhavam pelo caminho. O cansaço era quase insuportável para Alice, mas ela se recusava a tombar no meio de uma necrópole, ao contrário do gato, que seguia tranquilo.
— Venha — disse o guia felino correndo na frente —, após aquele paredão deixaremos o vale e haverá um lugar para descanso.
Seguiram pelos metros finais até que o relevo mudou. O solo lamacento deu lugar a uma terra viva, onde uma grama incipiente insistia em crescer. As árvores, embora poucas e sem frutos, tinham certa graça, e o peso das trevas parecia não estar mais sobre a cabeça de Alice, prestes a esmagá-la.
Uma enorme mesa de jantar estava posta no meio de uma clareira, cercada por jaulas de madeira e de carroças. Alice reconheceu imediatamente, sentado em uma das cadeiras, o coelho que vira através do espelho. Na ponta da mesa, um homem branco como leite, de nariz comprido, olhos negros, roupas coloridas e uma cartola enfeitada, abriu os braços e deu um salto ao vê-los.
— Parece que teremos companhia para o jantar — falou o anfitrião em voz alta, enquanto caminhava sobre a mesa, derrubando xícaras e pratos. — A quem devo a honra da visita, nobre Gato de Cheshire?
— Então é esse o seu nome? — perguntou Alice.
— E o seu, minha jovem caminhante? — perguntou o homem. — Como devo chamá-la?
— Alice. Eu estou...
— Alice — gritou o anfitrião, batendo palmas —, que nome lindo! A rainha não tem uma serviçal chamada Alice.
O comentário fez a garota olhar com mais atenção ao redor. A maioria das celas estava ocupada por homens e mulheres, alguns visivelmente machucados e famintos. O cenário era de um mercado de escravos comandado por um maluco excêntrico.
— Chapeleiro — disse enquanto rodeava a garota —, é como me chamam aqui. Considere sua dívida paga, meu caro gato. Amanhã levarei essa linda menina para os jogos reais.
— Não a trouxe aqui por essa razão, Chapeleiro — argumentou o Gato de Cheshire —, não foi o que combinamos. Ela não é uma escrava.
— Agora é — respondeu intransigente. — Prendam-na!
Soldados vestidos como cartas de baralho saíram de dentro da mata e agarraram Alice antes que a menina pudesse reagir. Jogaram-na dentro de uma cela vazia cujas grades amarraram a uma das carroças.
— Esse não é um mundo para sentimentalismos, gato — falou enquanto pegava uma xícara de café. — A Rainha de Copas pagará um bom preço por essa garota. Espero que você compreenda isso e aceite o seu lugar neste reino.
O Gato de Cheshire meneou a cabeça e saiu sem dizer nada. Seu olhar encontrou o de Alice, que chorava em silêncio. Ela pedia ajuda. Ele, perdão.
Na manhã seguinte as carroças partiram pela estrada, arrastando as celas. O chapeleiro seguia na frente do comboio, acompanhado pelo gato e o coelho, até que alcançaram os portões de um imponente castelo negro, com quatro torres altas e cercado por um imenso jardim de rosas púrpuras.
— Cortem-lhe a cabeça! — gritava uma voz feminina.
Alice ficou aterrorizada com a cena que presenciou. Uma mulher clara, de olhos cor de mel e longos cabelos brancos estava sentada no centro de uma mesa, enquanto ordenava que o carrasco decapitasse, uma a uma, as pessoas que aguardavam em uma fila de execução. Os gritos eram desesperadores.
O chapeleiro seguiu até a rainha e sussurrou algo. A mulher assentiu com a cabeça, ajeitou a coroa prateada cravejada com rubis, levantou-se, exibindo o longo vestido vermelho, e ordenou que trouxessem Alice até ela.
— Você é realmente graciosa — disse enquanto observava a garota dos pés à cabeça —, será uma escrava de valor.
— Jamais — respondeu fixando o olhar na Rainha de Copas.
— Nesse caso, perderá a cabeça.
— Que seja, e você perderá a chance de ter uma criada especial, como disse, para servi-la por toda a vida — sustentou Alice. — Tenho uma proposta que pode te interessar.
— Estou ouvindo.
— Escutei, durante a noite, que você é uma amante dos jogos. Mais ainda, que é uma exímia jogadora de croquet. Proponho uma partida. Caso eu saia vencedora, você me concede um desejo, irrestrito, que deve ser obedecido sem questionamentos. Afinal, preciso libertar uma pessoa.
— E se eu ganhar?
— Serei sua prisioneira até o fim dos meus dias, atendendo, sem nunca questionar, todas as suas determinações. Você não tem muito a perder.
— Desafio aceito — declarou, arrogante. — Vamos logo com isso.
As competidoras seguiram para o meio do jardim, onde estavam instalados os aros e fincada uma estaca. Cada uma pegou seu taco e a rainha decidiu começar. Segura, bateu forte na bola, que passou por todos os arcos e por pouco não tocou a haste de madeira, o que teria sido uma jogada perfeita.
— Agora é sua vez, minha futura serviçal — disse sorrindo —, mas você vai jogar naquele campo. — Apontou para uma sequência de aros instalados a alguns metros, posicionados em curva sobre um relevo desnivelado, impossíveis de serem atravessados por uma batida normal.
Alice não disse nada. Foi até a sua base de lançamento e, antes de bater na bola, concentrou-se no primeiro aro. Percorreu todo o caminho dos obstáculos com os olhos, as pupilas dilatadas, como se falasse através delas. Voltou o olhar para o taco e bateu forte.
A trajetória seguida pela bola ignorou as leis da física, atravessando o caminho curvo e passando por dentro de cada aro. Como um projétil teleguiado, acertou a estaca bem no meio, derrubando-a no gramado.
O silêncio tomou conta do reino. Ninguém emitiu um som. A rainha, enrubescida de raiva, olhava Alice com a fúria estampada na face.
— O que aconteceu aqui? — gritou incrédula.
— Você perdeu, Rainha de Copas. Ordenarei a minha vontade e prometo que nunca mais ouvirá minha voz.
— Que seja — respondeu a rainha, virando-se de costas. — Seja breve.
— Guardas — ordenou Alice. — Cortem-lhe a cabeça!
Horrorizada, a rainha tentou protestar, mas foi colocada de joelhos por um dos soldados. Quando levantou a cabeça e fitou sua algoz, um golpe de espada partiu seu pescoço ao meio. A cabeça rolou até Alice, que levantou um dos pés para não sujar o sapato com sangue.
— A Rainha de Copas foi deposta — sentenciou —, eu serei sua nova governante. Prendam aquele chapeleiro maluco e joguem-no nas masmorras.
Alice olhou para o ombro esquerdo, sobre o qual o gato se materializou.
— Não imaginei que você fosse tão habilidoso no croquet — disse olhando para o cúmplice —, saiu-se melhor que o planejado.
— Calculei cada passo por toda a noite — respondeu pensativo —, mas não imaginei que você ficaria tão confortável no papel de tirana.
— Eu não sabia que o poder absoluto era tão sedutor.
— O que você fará agora, Rainha Alice?
— Agora? — Abaixou-se e pegou a coroa prateada. — Governarei.

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