Raízes amazônicas, o ecossistema Curupira - Indicado ao Prêmio Cartola de Literatura

 


Raízes amazônicas, o ecossistema Curupira

Tiago da Costa

 

O indicador do ar-condicionado marcava dezesseis graus, metade do que fazia do lado de fora, no coração quente e úmido da maior floresta tropical do planeta. No centro da sala com paredes de vidro, sobre a mesa de aço, coberto por um pano branco, repousava o corpo de um homem. Forte, baixo, ombros largos, cabelos cacheados cor de fogo e pés descalços virados para trás.

— Seis meses, meu caro guerreiro — disse um homem de cabelos brancos presos em rabo de cavalo, enquanto descobria parte do lençol sobre o corpo, deixando exposta a ferida no peito do cadáver. — Você nos custou um semestre de atraso em pesquisas e alguns milhões de dólares.

— E agora, sr. Carlone? — perguntou o pesquisador-chefe do laboratório, trajando um jaleco branco bem cortado e ajeitando os óculos de lentes redondas. — Como será a retomada do projeto?

— Agora vamos recuperar o prejuízo. Nada pode deter uma tecnologia que encontra sua época, dr. Gael — disse, deslizando a mão sobre a borda da mesa. — O nosso tempo chegou. Sem o Curupira no caminho, conseguiremos instalar as sondas e preparar o início da exploração do ouro negro. Extrairemos do rio Amazonas um petróleo com qualidade superior a qualquer outro produzido no mundo.

Há um ano, a maior empresa petrolífera do Brasil, a Puro Óleo S.A., instalou uma base de pesquisa em um ponto inexplorado da Floresta Amazônica. Estudos demonstraram a existência de petróleo em seu principal rio em um volume inimaginável, de fácil extração e de qualidade elevada. Um verdadeiro tesouro escondido sob as águas.

Após os primeiros indícios da concentração do combustível fóssil no local, centenas de profissionais especializados firmaram acampamento no meio da floresta e ali edificaram uma espécie de base militar. Desmataram cinquenta mil metros quadrados de mata nativa e ergueram, em tempo recorde, uma fortaleza de aço, vidro e antenas, onde antes existia fauna e flora.

Homens armados com conhecimento de selva garantiam a segurança de toda a operação. Engenheiros e cientistas estudavam incansavelmente para definir os pontos do rio onde seriam erguidas plataformas para a instalação de sondas de perfuração, que garantiriam a retirada de milhares de barris de petróleo diariamente.

Passados seis meses de atividade do centro de pesquisa em terra firme, a primeira plataforma flutuante estava em estágio final de construção. Nas semanas seguintes, a empresa daria início ao ambicioso processo de exploração de petróleo na floresta mais importante do mundo. Tudo havia sido meticulosamente calculado e nada deveria sair do planejado, a não ser por uma variável que não foi considerada: o Curupira.

Os exploradores demoraram alguns dias para perceber que todas as suas ações estavam sendo sabotadas. Transformadores de energia explodiam sem causa aparente, pneus de veículos estouravam no trajeto entre o centro de pesquisa e o leito do rio, homens armados desapareciam na selva e lanchas de transporte eram afundadas durante a noite. As equipes simplesmente não conseguiam terminar suas tarefas para colocar a plataforma em atividade.

Foi preciso tempo para compreender que tudo era uma ação sobrenatural arquitetada por uma criatura conhecedora dos profundos segredos da Amazônia. O Curupira, homem ágil que não podia ser rastreado, porque deixava pegadas em todas as direções, estava decidido a impedir que a Puro Óleo S.A. continuasse a destruir seu meio ambiente. Essa resistência, entretanto, despertou a ira de pessoas poderosas. Um grupo de ex-combatentes, com experiência em guerras e missões de resgate, foi recrutado para capturar a criatura lendária.

Passados meses de buscas na mata, entre fugas e confrontos que vitimaram alguns guerrilheiros, o Curupira foi capturado numa armadilha. Para evitar o risco de fuga, o chefe da missão deu um tiro de pistola no peito do guerreiro das matas, eliminando a última resistência aos planos da petrolífera.

— Reconheço alguma nobreza na tentativa dos nativos de impedir o progresso, dr. Gael, mas ela é ingênua e ineficaz. — Ernesto Carlone cobriu o corpo sobre a mesa e encaixou o último botão do paletó, que insistia em usar mesmo sob as altas temperaturas do clima equatorial. — Amanhã, irei pessoalmente à plataforma para acompanhar a finalização das instalações.

— Acho que o senhor é o único diretor de uma multinacional que coloca os pés na lama para supervisionar uma obra.

— Estamos diante de uma oportunidade única — afirmou com os olhos brilhantes —, essa companhia alcançará um patamar inédito após o início das extrações. Eu faria muito mais que pisar na lama para garantir o sucesso dessa empreitada.

Tão logo pousaram os primeiros raios de sol sobre as águas escuras do rio Amazonas, homens, veículos terrestres e lanchas para transporte de pessoas e equipamentos estavam espalhados em suas margens.

Ernesto Carlone observava a intensa movimentação da equipe quando foi interrompido em seus pensamentos.

— Sr. Carlone — disse um dos empregados, seguido por outros dois, que traziam um homem amarrado pelas mãos —, este nativo estava espiando, escondido na mata.

— Eu sei quem é o senhor — respondeu Carlone, com a fala calma, sem demonstrar surpresa. — Não sei o seu nome, mas descobrimos tudo sobre os habitantes daqui. Você é o líder de uma tribo indígena da região. O que quer?

— Eu tenho muitos nomes, isso não é importante. — A floresta parecia ficar em silêncio enquanto o xamã falava. — Eu vim dar um conselho, embora ninguém tenha solicitado: deixem essas terras imediatamente. A resposta da natureza será implacável.

— Você sabe o que ocorreu aqui nos últimos meses, cacique? — O tom de voz estava carregado de deboche e de indignação. — Nós tentamos trazer o progresso para sua região e tudo que fizeram foi destruir nossos equipamentos. Alguns de meus homens morreram trabalhando. Mas agora acabou! Nós matamos o Curupira, líder de toda essa irresponsabilidade.

— Você não compreende o funcionamento da floresta. Curupira não é apenas um homem que defende as matas. Ele é uma força responsável por manter o equilíbrio dessa parte do ecossistema.

— Vocês são muito folclóricos — disse entre gargalhadas. — Quer dizer que o jovem morto sobre a mesa do meu laboratório vai ressurgir aqui para me atrapalhar novamente?

— Não — o xamã abaixou a cabeça —, ele não voltará. A balança da vida cuidará para que o equilíbrio seja restabelecido. O tempo fará você perceber a gravidade dos seus equívocos.

— Tempo — sorriu com desdém —, esse é um dos poucos recursos que me faltam. Agora saia da minha frente.

Não bastasse ter ignorado as orientações do líder indígena, Carlone mandou que a equipe o mantivesse preso no laboratório até uma nova ordem. O Curupira estava morto e o xamã detido. Nada mais poderia impedir as operações do grupo industrial, mas sinais de que a disputa ainda não havia acabado surgiram às margens do rio, logo na manhã do dia seguinte.

Marcas de pegadas apareceram por toda a extensão dos acampamentos, nas mais diversas direções, sendo impossível rastrear seu sentido ou estimar quantos pés havia ali, se alguns pares ou algumas centenas.

— Isso é mais um truque — gritava Carlone com seus subordinados —, não interrompam os trabalhos. Alguém está tentando nos pregar uma peça, passando-se por Curupira, mas vai pagar caro por essa travessura.

Os funcionários tentaram manter o foco nos trabalhos e cumprir suas tarefas com naturalidade, mas era impossível ignorar que tudo ao redor estava diferente. A floresta, quase sempre silenciosa, estava agitada naquela manhã. O revoar dos pássaros sobre as instalações era constante e seu canto, acompanhado de gritos que vinham do alto das árvores, era intimidador. A natureza parecia entoar um cântico de guerra.

As lanchas eram carregadas o mais rapidamente possível e seguiam em direção à plataforma, localizada a um quilômetro da margem. Mal partiram e começaram a perder velocidade, como se estivessem passando sobre obstáculos escondidos debaixo do espelho d’água.

Dezenas de embarcações tiveram que desligar os motores para averiguar o que as estava mantendo imóveis. Foi quando começou um ataque sem proporções. O rio foi tomado por centenas de jacarés, alguns maiores que as próprias lanchas. Os répteis emergiam e viravam os barcos com facilidade, numa luta desigual. À medida que as embarcações eram derrubadas, os animais formavam uma espiral que devorava tudo.

Uma esplêndida coreografia da morte, executada em perfeita coordenação, fazia os homens desaparecerem sob as águas sem chance de defesa. Ninguém conseguiria atravessar o rio naquele dia.

Os profissionais em terra começaram a lançar bombas e a atirar com suas armas pesadas na direção das águas. Mal perceberam quando o ataque aéreo foi iniciado. Dezenas de milhares de araras, tucanos, garças, gaviões, entre outras espécies, lançavam-se contra os atiradores.

As aves se uniam no ar, em sincronia, formando um enorme punho fechado e golpeavam violentamente seus opositores, que corriam desordenados. Retomavam altura e desciam novamente sobre o solo, em um turbilhão que envolvia até os veículos leves. Enxames de abelhas se juntaram ao ataque, numa ação orgânica contra a qual não havia possibilidade de defesa.

Aqueles que tentaram se esconder na mata não tiveram melhor sorte. Onças-pintadas e macacos-prego surgiam numa emboscada certeira, caçando-os como presas feridas. A coordenação das ações era perfeita. Carlone, com outro funcionário, conseguiu fugir em um jipe por um dos acessos. Dirigiam em alta velocidade pelas matas, enquanto fugiam da multidão de macacos que os perseguia por cima das árvores. Ligou para Gael em um ato de desespero.

— Doutor, ouça com atenção — gritava, tentando se segurar no jipe —, o Curupira não morreu. Ele tem algum tipo de ligação com a floresta e está liderando um ataque a partir daí. Convoque os melhores homens disponíveis, entre naquela sala e dê fim nele, definitivamente. Queime-o, se necessário!

O chefe do laboratório atendeu prontamente, mas não conseguiu acreditar no que viu ao chegar na sala de vidro. Não havia corpo no local, mas apenas uma árvore, com raízes que se espalhavam pelo chão, paredes e teto, através das quais se percebia um líquido amarelo-fosco circulando, como uma seiva dourada. O sangue da floresta. Gael foi até a cela onde estava o xamã, não sabia mais o que fazer.

— Senhor — suplicou —, ainda podemos nos salvar? O que está acontecendo aqui? Nos ajude, por favor. Quem são vocês? O que é tudo isso?

— Vocês foram longe demais. A ganância os deixou cegos — falou enquanto se levantava e caminhava, sem oposição, para fora do recinto.

— Meu nome é Saguinus, e sou apenas o chefe da tribo Sumaúma. O que vocês não compreenderam é que a floresta é um único ser vivo. Vocês não podem derrubar centenas de árvores, queimar um sem-número de espécies e acreditar que não responderão perante a Mãe Natureza, com toda a sua força.

— Isso tudo foi uma resposta à morte de Curupira?

— A Floresta Amazônica é mais que uma presença física neste planeta. — Parou na porta enquanto explicava. — Há conexões profundas entre este mundo e um outro, etéreo, que vocês desconhecem. Existe um espírito protetor que se utiliza, nos momentos em que a floresta está sob risco, do corpo de um guerreiro indígena para defendê-la no mundo físico. O escolhido se funde espiritualmente à floresta, conectando-se com todos os seres vivos desse meio ambiente.

— Nosso erro é irreversível — lamentou —, quando matamos o Curupira…

— Vocês tentaram destruir o coração e a alma da Floresta Amazônica. O corpo pereceu, mas a força que se abrigava nele reagiu com todo o poder da selva.

No final do dia, nenhum explorador sobreviveu para registrar o ocorrido. Saguinus voltou para sua tribo e iniciou os preparativos para o funeral do último guerreiro Curupira. Seu coração se aqueceu em alegria ao perceber que havia um vulto contornando a aldeia, escondido, quase imperceptível, entre as árvores.

Atento, conseguiu identificar o ponto avermelhado que passava rapidamente pela mata, como um raio entre nuvens. Reconheceu o cabelo cor de fogo, lançou o olhar ao solo e identificou as marcas dos pés virados, que pareciam sair da mata em direção à fogueira.


Conto indicado ao V Prêmio Cartola de Literatura nessa antologia.
Publicada originalmente em:
Antologia "Encanto, um Mergulho no Folclore Brasileiro" (Cartola Editora, 2024).

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