Segredos de família - Vencedor do Prêmio Cartola de Literatura

 


Segredos de Família

Tiago da Costa

 

A chegada do Baile das Bruxas era aguardada há meses pelos moradores de Willowbrook. A pacata cidade localizada no estado de Nova Iorque nunca fora populosa, mas viu o número de habitantes diminuir ano após ano por conta dos incidentes ocorridos na Mansão Osbourne.

O mais famoso ocorreu em 1969, quando a jovem Berenice Dickens, filha única do casal de médicos que residia na casa, tirou a própria vida. O caso impulsionou a criação das mais sombrias histórias acerca das razões que levaram a estudante de literatura a tomar tão drástica decisão. Várias foram as suposições, mas nunca se chegou a uma verdade comprovada.

A comunidade local não aceitou bem o fato de o psiquiatra Leopold Dickens, pai de Berenice, ter sido o único responsável por emitir o seu atestado de óbito. Dias após o misterioso falecimento, todos os oito empregados da casa, juntamente com o casal, desapareceram. Foi tudo repentino. O carteiro foi entregar a correspondência numa manhã e percebeu que não havia mais ninguém no imóvel.

A comunidade de Willowbrook especulou por meses sobre o que teria acontecido com a família Dickens e seus empregados. A hipótese mais famosa era a de que crimes eram praticados por anos nas dependências da casa. Quando a filha do casal descobriu que os pais, respeitáveis médicos da cidade, eram, na verdade, desequilibrados que torturavam e matavam pessoas, ameaçou entregá-los às autoridades. Contam que o próprio Dr. Dickens teria dado fim à filha, forjando um suicídio para se proteger. Após o assassinato da garota, os médicos teriam matado todos os empregados, enterrado seus corpos e desaparecido na sequência.

Há ainda a teoria de que todos os residentes da mansão – família e empregados – formavam uma quadrilha que atraía vítimas, sob a promessa de emprego e moradia, para depois executá-las. Berenice não teria suportado quando descobriu o tipo de gente que a cercava e, em um ato de desespero, deu fim à própria vida.

Desde o desaparecimento dos moradores da mansão, nunca mais se observou qualquer movimentação de pessoas no local. As enormes janelas de vidro e as espessas portas de madeira da construção em estilo gótico permaneceram fechadas. A casa estava tomada pela poeira e os jardins se resumiam a um conjunto de galhos secos, até que tudo mudou.

Era fevereiro de 1970 quando a excêntrica Madame Eleonor começou a fazer visitas ao imóvel, sempre acompanhada por um arquiteto, corretor ou outro especialista do mercado imobiliário. Logo a notícia correu a cidade e todos souberam que a Mansão Osbourne tinha nova proprietária. Mais que isso, que ela daria, nas dependências do local, a maior festa que Willowbrook jamais vira.

Dezenas de pessoas começaram a trabalhar na reforma do imóvel. Duas caíram do telhado e morreram durante a execução dos trabalhos, o que não foi suficiente sequer para atrasar o projeto de Madame Eleonor. Mais que uma obra convencional, ela determinou que se fizesse uma profunda restauração da residência para que ficasse idêntica aos seus primeiros anos.

Madame Eleonor era uma pesquisadora respeitada, conhecida pela capacidade de realizar profundas investigações sobre lugares e pessoas. Não bastasse a divulgação da festa de dia das bruxas que viria após a reforma, ela anunciou que revelaria, durante o evento, a razão pela qual Berenice Dickens teria se matado, o passado criminoso de seu pai e o grau de participação dele no fim trágico da filha.

Correspondências foram distribuídas pela cidade, endereçadas a um público predominantemente jovem. Setecentos convites foram enviados, e ninguém anunciou a intenção de recusa. Cada pessoa recebeu pelo correio uma caixa de madeira que continha uma carta confeccionada em seda, onde se lia, numa grafia vermelha púrpura com contornos em amarelo-fosco, a data e horário da festa, junto a uma bem confeccionada máscara que cobria olhos e nariz. O evento foi marcado para o último dia do mês de outubro daquele ano, um sábado de Halloween.

Passados os seis meses de trabalhos intensos para restauração e reinauguração do imóvel, era chegada a noite da aguardada festa. Os convidados se apresentaram nos primeiros minutos após as vinte horas, e a rua da mansão estava abarrotada de gente, em sua imensa maioria pessoas que não foram convidadas, mas estavam ansiosas para assistir a chegada dos afortunados, bem como presenciar a reabertura da famigerada mansão, há tanto tempo desocupada.

Homens altos e simpáticos, usando trajes de gala pretos, verificavam os convites na porta principal. Dezenas de lindas atendentes recepcionavam cada convidado, conduzindo-os até o interior da casa. Um batalhão de garçons andava pelos três salões servindo bebidas diversas e petiscos. Alguns circulavam com bandejas repletas de taças de cristal e baldes de gelo.

Não havia quem fosse capaz de esconder o fascínio ao perceber a exuberância da decoração e a riqueza de cada detalhe. No início do salão principal havia duas escadas em mármore cinza que davam acesso ao segundo andar. Os lustres eram repletos de cristais, mas, apesar disso, a intensidade das luzes era baixa. O ambiente, embora iluminado, carregava um ar sombrio.

Atravessando o primeiro salão havia outros dois, onde se notava a mudança de cores e texturas nos pisos, teto, paredes e móveis. Todos os objetos de madeira pareciam vivos, quase pulsantes. A mansão, que contava com o pé direito de quase dez metros, era muito maior do que se podia imaginar ao vê-la pelo lado exterior.

Os convidados conversavam animados, enquanto apreciavam a beleza do lugar e aproveitavam a fartura de especiarias e bebidas sofisticadas. Trajavam roupas escuras e usavam as máscaras que receberam. Fazia calor. Entre um e outro grupo, esbanjando simpatia, Madame Eleonor tentava dedicar alguma atenção a todos.

A anfitriã bebia um drinque cor de sangue com uma flor de laranjeira arrumada na borda da taça. Dava as boas-vindas a um dos convidados quando viu passar pela entrada o Sr. Killmer O. Gregory, o homem que tinha a fama de ser um dos corretores imobiliários mais exclusivos do estado de Nova Iorque. Seguiu de braços abertos ao encontro do velho de baixa estatura e barba branca.

— Sr. Gregory, é uma imensa alegria tê-lo conosco! — Madame o abraçou com notório entusiasmo. — Veja a transformação que realizei nessa mansão. Qualquer um diria se tratar de outro imóvel, se compararmos ao seu estado quando o visitamos pela primeira vez.

Killmer foi o corretor que apresentou a Mansão para Madame Eleonor. Eles se tornaram próximos porque ela ficou encantada com a qualidade do atendimento prestado. Além de apresentar o imóvel detalhadamente, ele era conhecedor de toda a sua história. Contou sobre as tragédias ocorridas em seus aposentos e as histórias de horror que envolviam seus moradores, mas nada disso diminuiu o interesse da cliente pela propriedade, ao contrário.

Durante os seis meses que duraram as reformas, a participação de Killmer fora de grande valia. Embora ele nunca estivesse presente fisicamente durante os trabalhos, indicou à Madame Eleonor todos os profissionais, dos jardineiros aos instaladores elétricos e técnicos em segurança. Todo esse esforço fez com que ela nutrisse por seu conselheiro, como passou a chamá-lo, notável respeito e admiração, externados no abraço demorado.

— Nada disso teria sido possível sem sua ajuda, meu amigo — disse, segurando as mãos de Killmer. — Ainda bem que não deixei você me convencer de desistir do negócio, como pretendia no início.

— Eu realmente não achava adequado que alguém comprasse a mansão depois de tudo o que ocorreu aqui — falava enquanto passava uma mão na barba e ajeitava a máscara —, mas percebi que seria inútil tentar demovê-la dessa ideia. Percebi logo que a senhora nutria verdadeira fixação pelo imóvel.

— Eu descobri tudo o que aconteceu por detrás das paredes desse lugar — Madame Eleonor quase sussurrava. — O pai da menina estava realmente envolvido na morte dela. O homem era um monstro, responsável por matar mais de dez pessoas da região. Hoje farei um pronunciamento contando a verdadeira história daquela família. A cidade precisa conhecer esse capítulo de horror que se passou aqui.

O Sr. Gregory fez um prolongado silêncio. Passou as mãos sobre os cabelos brancos e olhou para a amiga com algum pesar.

— Certas coisas não deviam ser revividas, Leo, mas também acredito que a noite de hoje jamais será esquecida.

Um garçom se aproximou, oferecendo uísque. Killmer pediu um cowboy. Madame Eleonor devolveu sua taça vazia e solicitou outra:

— Traga-me algo com bastante gelo. Não sei como o Sr. Gregory pode suportar uma bebida quente nesse calor.

— Esse tanto de gelo ainda vai matar vocês — disse, gargalhando —, além de acabar com a pureza da bebida. Com sua licença, preciso ir ao banheiro.

Madame Eleonor continuou recepcionando os convidados. Notou que alguns estavam mais agitados que o normal, afrouxando as gravatas ou buscando se abanar de alguma forma. Percebendo que os garçons se movimentavam depressa, perguntou a um deles se havia percebido algo fora do esperado.

— As pessoas estão reclamando de uma onda de calor, Madame Eleonor. Todos estão pedindo por água ou mais gelo em suas bebidas. O bufê está correndo com tudo para atendê-los com perfeição, como a senhora determinou.

A anfitriã já tinha sede novamente. Nada que a preocupasse. Lembrou-se de que tinha algo ainda a tratar com o Sr. Gregory e, aproveitando que havia encontrado um dos antigos moradores da cidade, perguntou pelo amigo:

— Boa noite, Sr. Martin. Você viu o Sr. Gregory por aqui?

— Desculpe, Madame Eleonor — o homem mostrou-se surpreso. — Eu devo ter ouvido errado.

— Sr. Killmer O. Gregory. Conversávamos agora a pouco, mas ele teve que sair. Viu ele pelo salão?

— Desculpe novamente, Madame. Não quero parecer indelicado, mas o Sr. Killmer Osbourne Gregory faleceu nesta casa há mais de cem anos. Foi ele quem ergueu esta mansão, como certamente é do conhecimento da senhora. Pelo que sei, ele não teve um filho ou neto com o mesmo nome. — O homem a encarou com espanto. — Madame... o seu nariz.

Eleonor deixou a taça cair e levou a mão ao nariz, que escorria sangue. Começou a ter ânsia de vômito e olhou ao seu redor, percebendo que vários convidados levavam às mãos à barriga, nariz ou ouvidos. Alguns vomitavam.

Olhou para cima e viu, perfilados no alto de uma das escadas, os antigos empregados da mansão, que conhecia por fotografias, e acreditava estarem mortos. Caiu no chão, apoiando-se sobre as mãos e joelhos, tentando conter um grito por conta da dor aguda no estômago. Chorou ao perceber que os convidados começavam a cair e se debater, sangrando pelos orifícios.

— Permita-me ajudar, Madame — um homem alto e bem-vestido levantou-a pelos braços. — Lamento que tudo termine, ou volte ao mesmo lugar, dessa forma trágica. Talvez a dosagem do veneno na água tenho sido exagerada.

Madame Eleonor ficou em choque ao encarar seu interlocutor.

— Meu nome é Leopold Dickens, mas disso a senhora já sabe. Peço desculpas se precisei ser um tanto radical para fazê-la desistir da ideia de destruir publicamente a reputação de nossa família.

— Como isso pode ser possível? — perguntou com esforço, pressentindo que pronunciava as últimas palavras em vida. — Vocês estão todos mortos. Eu vi.

— A cidade não precisa saber se estamos mortos ou vivos, Madame. Não é onde estamos o que importa, mas o que precisamos preservar. Willowbrook deve muito à história construída pela Família Osbourne e pela minha família. Agora descanse e aprecie a beleza do novo capítulo que escrevemos na biografia da cidade nesta noite.

Eleonor, estirada no chão, conseguiu assistir os convidados caírem um a um, desesperados com as feridas que se abriam em seus rostos e com o sangue se espalhando pelo corpo. Constatou surpresa que, em seus momentos finais, as pessoas não gritavam em desespero, mas perguntavam em tom introspectivo o porquê daquela chaga se abater sobre elas. Passados poucos minutos, tudo que restou foi o silêncio.

No dia seguinte, a cidade acordou, aterrorizada, com a notícia de que todos os convidados foram encontrados mortos, banhados de sangue, nos salões da Mansão Osbourne. Não havia entre as vítimas nenhum garçom, recepcionista ou cozinheiro, apenas as setecentas pessoas cujos nomes constavam da seleta lista. A revelação prometida por Madame Eleonor permaneceu um mistério.


Conto vencedor do V Prêmio Cartola de Literatura nessa antologia.
Publicado originalmente em:
Antologia "Mistérios da Mansão Osbourne" (Cartola Editora, 2024).

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