Dívida antiga
Dívida antiga
Tiago da Costa
— Um brinde à sua determinação e
inteligência! — declarou levantando a taça de espumante, através da qual admirava
o rosto sorridente de Anna. — Nada disso teria sido possível sem você, querida.
— Foi o nosso esforço, meu bem — respondeu
enquanto fechava a porta da geladeira e colocava a garrafa de água sobre a
bancada da cozinha. — O plano era ambicioso demais. Nunca daria certo se não fôssemos
nós dois, juntos, como está acontecendo.
— Vejo as transferências sendo
confirmadas e custo a acreditar. Olha só isso — disse deslumbrado, apontando a
tela do notebook sobre a mesa, repleta de gráficos e números. — As operações
ocorrendo simultaneamente, o dinheiro mudando de mãos debaixo dos olhos deles,
e ninguém se dando conta de nada. Acredito que concluímos a fase de testes,
agora falta o golpe definitivo. A nossa vingança será esplendorosa!
— Não é vingança, Victor — respondeu encarando
o namorado. — É justiça; pelo meu pai e por todas as famílias destruídas por
esse sistema predatório.
— Seu pai estaria orgulhoso de você — disse
segurando a mão da namorada —, e de tudo que planejou para chegarmos até aqui. Esses
caras não podem continuar enriquecendo às custas da desgraça de famílias. Já
passou da hora do mercado financeiro ser responsabilizado pela destruição que promove.
Há um ano Anna vivia o dia mais difícil
de sua vida, quando numa madrugada de sexta-feira recebia a notícia de que o
pai havia sido atropelado. O corpo fora encontrado às margens de uma avenida
movimentada. O frentista de um posto foi quem chamou o resgate. O motorista fugiu sem prestar socorro.
Os exames indicaram que a vítima havia
bebido, mas Anna sabia que a razão do pai ter saído para caminhar em um horário
tão improvável era a tristeza e o desespero que o consumiam, em razão de empréstimos
que não conseguia quitar.
Nicolas Hermann havia se endividado para
financiar um projeto promissor. Era um competente engenheiro do setor de
energia e havia criado uma empresa de placas solares especiais, mais baratas e
eficientes que as convencionais, mas mudanças na legislação e uma crise no
setor colocaram seu negócio em dificuldade. Ele precisou de novo empréstimo,
mas o gerente do banco não aprovou.
Não restou opção a Hermann, senão vender
a única casa para conseguir honrar seus compromissos, mas foi nesse processo
que descobriu que o sócio estava desviando dinheiro do negócio. O engenheiro nunca
havia se debruçado sobre as questões financeiras e contratuais da empresa e,
quando percebeu o golpe, já era o responsável por uma dívida impagável.
O efeito bola de neve foi devastador.
Sem a aprovação de novo financiamento, ficou inadimplente. Os fornecedores o
acionaram na justiça. O banco usou de informações privilegiadas para ter
preferência na fila de credores, tomou para si a empresa e não perdoou a dívida,
que só fazia aumentar. O sócio desapareceu.
Desempregado, o pai de Anna vivia de
serviços de consultoria que mal pagavam suas despesas. Passou a beber em
horários antes dedicados à criação de projetos. Costumava caminhar pelas
madrugadas para espairecer, até aquela noite, quando não retornou.
Anna, mestre em economia e gerente em um
banco importante há mais de uma década, decidiu na semana da morte do pai dar
um recado que não poderia ser ignorado pelo mercado financeiro. Demandaria
tempo e dedicação, mas encontrando as pessoas certas para ajudá-la, planejava assaltar
sua própria instituição, sem ameaçar ninguém, sem pegar numa arma, mas expondo uma
falha inconcebível no sistema de segurança bancário.
Os anos de exercício na função
permitiram que ela tivesse acesso a sistemas e senhas especiais, com as quais
poderia realizar saques nas carteiras de clientes, desde que o montante fosse direcionado
para outras previamente autorizadas no próprio banco. O plano era realizar esses
saques e, na sequência, desviar todos os valores para sua própria conta.
Concluída a primeira etapa, a gerente
realizaria novas transferências de forma imediata, dessa vez da sua conta pessoal
para diversos bancos digitais cadastrados em paraísos fiscais espalhados pelo
mundo. Quando os clientes e o banco percebessem o desvio, Anna já estaria fora
do Brasil, desfrutando de seu roubo multimilionário. Faltava encontrar um
parceiro que viabilizasse a criação e acesso às novas contas sem que ela fosse
rastreada. Foi quando conheceu Victor.
— Você já se arrependeu profundamente de
algo que tenha feito?
— Por que isso agora, Anna? — perguntou
enquanto abria mais uma garrafa. — Não vai me dizer que a consciência começou a
pesar justamente agora que estamos a algumas horas de concluir o plano. Não se
esqueça de que colocamos nossa vida nisso.
— Uma vida que ficará para trás, Victor.
Eles nunca nos deixarão em paz. Teremos a polícia internacional e alguns
banqueiros no nosso encalço para sempre.
— Não deixe as dificuldades te impedirem
de enxergar a recompensa, meu amor. Já revisamos a estratégia dezenas de vezes.
Não somos dois moleques roubando uma mercearia e fugindo a pé.
— Eu sei disso, mas irritaremos gente
muito poderosa.
— Anna — disse segurando as duas taças
e olhando profundamente nos olhos da namorada —, nossa vida antiga acaba hoje.
Vamos manter o plano e seguir a rota traçada, começando pelo leste europeu. Teremos
novas identidades e, a partir de amanhã, duzentos milhões de reais nas nossas
contas. É mais que o suficiente para nos escondermos em qualquer lugar do mundo
pelo resto de nossas vidas.
— Você viverá com a consciência
tranquila?
— Leve como uma pluma — respondeu seco em
um tom de voz mais alto que o normal. — É como planejo viver os próximos anos.
— Penso em alguns momentos como seria se
pudéssemos voltar atrás.
— Agora não é o momento para falarmos em
arrependimentos. Você está começando a me irritar.
Victor era um engenheiro da computação especialista
em segurança digital. Apaixonado por computadores desde criança, invadiu a rede
do colégio aos treze anos para alterar suas notas e frequência. Passou a adolescência
hackeando sistemas de empresas e obtendo pequenas vantagens. Na idade adulta parou
de andar à margem da lei e começou a trabalhar com segurança eletrônica.
Conheceu a namorada em um momento
difícil. Estava iniciando a carreira de consultor independente para tentar
reerguer-se profissionalmente depois que sua antiga empresa declarou falência.
Conseguiu um contrato com o banco de Anna e se conheceram em um treinamento ministrado
por ele.
O tempo revelou que tinham muito em
comum. Ambos eram profissionais determinados, ambiciosos e que conheciam o funcionamento
do mundo bancário. A economista pretendia usar da sua experiência para fazer
justiça. Era como se pudesse aplicar uma multa ao banco pelos contratos
abusivos que costuma celebrar. O engenheiro, por sua vez, gostava da companhia
da namorada e amava a possibilidade de ficar rico.
Anna avaliava, quando a dor pela saudade
do pai lhe apertava o peito, se valia a pena levar até o final seu plano de
vingança. Reconhecia os defeitos de Victor e considerava se, ainda que fosse ao
lado de um novo companheiro, não poderia continuar a viver no seu país, na
cidade em que morou a maior parte da vida, cercada das pessoas de quem gostava.
Abandonar a história construída e os laços conquistados ao longo de tanto tempo
para apostar em um caminho incerto era uma escolha que tinha seu preço. Ela
sempre perguntava a si mesma se não estaria pagando caro demais por isso.
— Vai dar tudo certo — disse Victor,
passando a mão sobre os cabelos pretos da namorada. — Você tem certeza de que
não quer dormir aqui?
— Vou ficar em casa nas minhas últimas horas
no Brasil. Deixei nossas malas prontas ao lado do sofá. Passo aqui no final da
tarde.
— Tudo bem se prefere assim, mas não se
atrase.
No dia seguinte, uma hora antes da
abertura da agência, Anna se sentava em sua mesa e começava a preparar o ato
final. A fraude só poderia ser realizada a partir do sistema interno do banco e
havia procedimentos prévios a serem realizados para que as operações não
levantassem suspeita de forma imediata. Se tudo desse certo, ela teria algo em
torno de cinco horas até ser apontada como culpada, tempo suficiente para sair
do país.
O namorado a esperava em casa para que iniciassem
juntos o caminho de fuga, mas o trajeto de Anna foi outro. Finalizadas as transações,
deixou o blazer sobre a cadeira e tomou um táxi para o aeroporto, levando
apenas bolsa e mochila.
No caminho conferiu os extratos bancários.
Quase não acreditou no resultado: cento e cinquenta milhões de reais espalhados
por centenas de contas pelo mundo às quais somente ela tinha acesso. Outros cinquenta
milhões depositados diretamente na conta de Victor com todos os rastros
atrelados a ele. Era um desenho detalhado de todos os passos do golpe, com
linhas que o ligavam diretamente ao crime.
Faltava a parte final do plano de
vingança. Anna enviou um e-mail para a polícia com documentos e espelhamentos
de telas que demonstravam toda a participação de Victor no desvio. Provas que
não deixavam dúvidas de que ele falsificou documentos públicos, criou para si identidades
falsas e desenvolveu programas com a finalidade específica de viabilizar a
fraude financeira. Demonstrou, ainda, que o namorado estava, naquele momento,
se preparando para deixar o país.
Na fila de embarque, acessou o sistema
de câmeras do prédio de Victor pelo celular e aguardou. Enquanto as portas do
avião se fechavam, Anna assistia à movimentação de viaturas cercando a rua. Foi
quando confirmou que o namorado estava online no aplicativo de conversas e
enviou uma mensagem de voz:
— Victor, tentarei ser breve. Sugiro que
preste atenção nas minhas palavras, pois esse áudio será apagado quanto terminar.
Gravo daquela forma que desaparece de todos os registros e não pode ser
reproduzido novamente, como você me ensinou.
— Sabemos que os bancos celebram
contratos abusivos e empurram muita gente honesta para uma espiral de
inadimplência da qual não conseguem se livrar, apesar de todo o esforço e
trabalho sério. Mas prometi ser rápida, então não vou desenvolver esse ponto.
— Segui até aqui com o plano para
penalizar o banco, mas acima de tudo para fazer justiça por meu pai. Acho que
nunca te falei o nome dele. Era Nicolas Hermann. Acredito que você também nunca
reparou no meu: Anna Müller H. Rocha. O M e H são meus sobrenomes paternos.
— Meu pai sofreu muito pela forma como perdeu
todo o patrimônio para o banco, mas me lembro como ficou devastado ao descobrir
que era roubado pelo sócio. Indiretamente foi isso que o matou. Não acredito
que você tenha esquecido desse capítulo de sua vida.
— Durante os últimos meses consegui
esclarecer todas as minhas dúvidas. Segui o rastro do dinheiro, analisei os
contratos e a verdade apareceu. Nicolas Hermann estava realmente sendo enganado.
Não foi fácil permanecer ao lado do criminoso pelo último ano, mas foi
necessário. Você não dirigia o carro que o atropelou, Victor, mas você o matou
antes disso ao roubá-lo.
— Vou viver bem sem você. Espero que encontre
o que merece. Olhe pela janela.
Victor estava pálido ao terminar de
ouvir a mensagem. Não conseguia raciocinar direito. Pensou em sair correndo,
mas foi até a sacada e viu a calçada tomada por dezenas de viaturas. Ligou o
computador sobre a mesa da sala e começou a apagar os arquivos que podiam
incriminá-lo. Mal sabia que os delegados já tinham tudo em mãos.
Foi quando a polícia anunciou sua
chegada, solicitando que ele se apresentasse. O engenheiro permaneceu estático,
tomado pelo pavor. Na sequência, os policiais derrubaram a porta, entraram no
apartamento e anunciaram sua prisão.
Revistaram as malas e verificaram que continham
apenas roupas masculinas e dinheiro vivo. No quarto, descobriram uma pasta com
documentos que Victor não imaginava que existiam, muito menos que estavam
guardados ali. Saiu de casa algemado, direto para a delegacia.
Sentada na primeira classe, Anna folheava
uma revista enquanto pensava sobre a vida que deixava no passado e o preço que
pagaria — ou receberia — pela nova história que escolheu viver. Nesse momento suas
ideias foram interrompidas pela voz do comandante:
— Senhoras e senhores passageiros, nosso
voo com destino à Cidade do Panamá terá duração aproximada de nove horas.
Aproveitem a viagem.

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