A última tempestade
A Última Tempestade
Tiago da Costa
— Belo Horizonte, nove de agosto de dois
mil e vinte três. — A voz rouca anunciava a primeira transmissão do dia. —
Saudações, sobreviventes. Infelizmente não trago boas notícias. Soubemos ontem
que o acampamento na Praça da Liberdade caiu. As criaturas invadiram o antigo
Palácio do Governador e nada restou.
O radialista conversava devagar e o seu
anúncio era prejudicado por chiados constantes, como se as notícias fossem
transmitidas por ondas tristes.
— O tempo permanece fechado — falava
calmo, mas em tom grave —, a chuva que cai agora deve perdurar até o fim do
dia, mas é provável que tenhamos temporais nesse mês. Restam ainda sessenta
dias de verão e precisamos aproveitar as oportunidades que vêm com as chuvas do
período. Volto à meia noite.
Há três anos, uma escuridão profunda
havia tomado o fim de tarde em todo o país e, acompanhada de uma chuva
torrencial, mantivera-se por um mês inteiro. A lembrança daquele período é
cristalina na mente dos sobreviventes.
Trinta intermináveis dias em que a luz
do sol desapareceu, dando lugar ao silêncio e ao medo. As pessoas buscaram
locais seguros e permaneceram escondidas, uma vez que, misteriosamente, muitas
começaram a simplesmente desaparecer. Ao final do trigésimo dia, a escuridão se
dissipou e as pessoas puderam constatar, incrédulas, que o mundo que conheceram
havia desaparecido.
A cidade de Belo Horizonte não existia
mais como antes. Depois que as águas das enchentes baixaram, o que se viu pelas
ruas foram carros abandonados, prédios destruídos e monumentos históricos
reduzidos a escombros.
Um mês sem nenhuma manutenção nos bens
públicos ou prestação de serviços básicos. O fornecimento regular de água, luz
e telefonia deixou de existir. O que restou na capital das Minas Gerais foram
ruas desertas, à exceção daquelas onde havia concentrações do que, um dia,
foram homens e mulheres. Inexplicavelmente, o resultado do mês que é lembrado
como a noite longa, além do rastro de destruição, foi uma epidemia zumbi.
Atualmente, ano de 2023, pouco se sabe
sobre esse fenômeno, cuja causa permanece desconhecida. As informações
coletadas desde a noite que mudou a história do país dão conta de que os
mortos-vivos se reproduzem pela mordida em humanos e, embora mais fortes, são,
por uma razão ignorada, completamente vulneráveis às chuvas. É apenas durante
as precipitações que as pessoas encontram segurança para transitarem pelo
espaço urbano.
Imerso em estudos desde os primeiros
dias do novo mundo, no subsolo do que restou do departamento de ciências
naturais da Universidade Federal de Minas Gerais, Charles, sentado na cadeira
giratória de forro rasgado, diante do quadro repleto de fórmulas matemáticas e
da mesa abarrotada de frascos e materiais de laboratório, concluía a equação da
sua vida.
— Encontrei o ponto ideal, Joana! A
reação finalmente estabilizou – o professor falava com a voz embargada. — Agora
conseguiremos transportar o composto para todos os pontos de resistência da
cidade.
Joana estava sentada no outro lado da
sala, fazendo cálculos sobre a quantidade de suprimentos que ainda restava no
abrigo. Havia assumido a função de coordenadora do departamento, como se
referiam ao andar subterrâneo de um dos antigos prédios da universidade,
utilizado como esconderijo desde o início da infestação zumbi.
— Eu sempre soube que você conseguiria,
professor — respondeu enquanto se aproximava do amigo. Passou as mãos sobre os
cabelos pretos e, discretamente, enxugou uma lágrima inesperada. Deu um abraço
demorado em Charles, o que o pegou de surpresa. — Nós venceremos esses tempos
malditos.
— Eu havia identificado o elemento na
composição da água das chuvas que faz com que os zumbis sejam intolerantes a
ela, mas não apresentem a mesma vulnerabilidade no contato com a água em outras
circunstâncias. — Charles passava páginas de suas anotações sobre a mesa
enquanto explicava.
— O mundo ainda vai ter a oportunidade
de agradecê-lo pela descoberta, professor. Sabemos do estrago que o seu
composto faz sobre os mortos-vivos.
— Eu consegui isolar uma molécula na
água da chuva que, ao que parece, só manifesta os seus efeitos até antes de
tocar o solo. Depois disso, não adianta coletá-la. Mas uma vez reproduzida em
laboratório, foi possível fundi-la com as moléculas da água comum, e assim
criar uma substância, uma água modificada, como a classifico na falta de um
nome melhor, que destrói os monstros.
Joana e Charles já haviam presenciado os
efeitos desse composto em alguns zumbis, quando conseguiram escapar de um
ataque perto do acampamento. Na ocasião, o professor tinha levado uma amostra
fabricada há poucos minutos para testá-la ao ar livre. Foram surpreendidos por
dois mortos-vivos e atiraram neles balões especiais que continham a água
modificada. O efeito foi animador, as criaturas caíram imediatamente após o
contato com o líquido, e assim permaneceram.
— Conheço bem o poder do seu composto,
Charles. Mas me lembro que você tinha dificuldades para mantê-lo ativo por mais
que algumas horas, o que nos impedia de armazená-lo.
— Aqui está a nossa resposta, querida
Joana! — disse apontando para o quadro. — Consegui conservar os efeitos da nova
molécula. Agora, uma pequena quantidade dessa substância será suficiente para
preparar milhares de litros de água comum, transformando-a na água benta de que
precisamos.
— Isso é maravilhoso, professor!
Precisamos levar isso para os demais acampamentos. As últimas transmissões do
rádio informam que núcleos de resistência estão caindo todos os meses. Em
breve, nada restará.
— Também temo pela nossa proteção, e sei
que o tempo não é um aliado. Considerei várias possibilidades, e acho que nossa
melhor chance é seguir até o Shopping Del Rey. Existe um grupo escondido dentro
do que restou dele. Se tivermos acesso à torre da caixa d’água, que abastecia
as lojas, conseguiremos derrubar multidões de zumbis. — Charles abriu um mapa
sobre a mesa. — Sairemos pela Avenida Carlos Luz e, seguindo por ela,
chegaremos no shopping em uma hora.
Saíram assim que a chuva reiniciou. Não
era forte a ponto de dificultar a travessia, mas intensa o suficiente para
impedir o aparecimento dos mortos-vivos. Deixaram o abrigo levando bolsas com
comida, remédios e kits de primeiros socorros, além de um galão de água
modificada que, adaptado, carregavam nas costas.
Percorrer os primeiros metros do trajeto
gerou grande tensão e estranhamento. Há muito não se arriscavam por aquela
região e era inevitável sentir um desconforto ao perceber a devastação que caiu
sobre uma das principais vias da capital.
A avenida, que comportava trânsito
intenso e era conhecida pelo movimentado comércio, agora se resumia a um
deserto de asfalto, repleta de veículos amontoados em toda a sua extensão. Um
retrato do novo mundo após a infestação zumbi.
Atravessaram todo o caminho, evitando
entrar em qualquer local que pudesse abrigar mortos-vivos. Ao cruzarem o
viaduto sobre o Anel Rodoviário, foi possível avistar a torre da caixa d’água
do shopping, uma construção que, contando com vinte metros de altura e cercada
por grossas paredes de concreto, era uma das poucas estruturas que permaneceram
erguidas.
Foram recebidos logo na entrada, ao
cruzarem o que um dia foi o portão do estacionamento inferior, por dois homens,
um com um rifle, outro com um machado de combate a incêndios.
— Quem são vocês? — perguntou o homem do
rifle, um sujeito magro, de barba branca, que não demonstrou simpatia. — Não
temos espaço para mais gente.
— Eu não tinha certeza se havia alguém
realmente abrigado aqui — falou Charles, levantando as mãos abertas na altura
do peito. — Estamos há muito tempo escondidos na UFMG. Passei os últimos anos
tentando achar uma arma eficaz contra os mortos-vivos e agora tenho algo para
compartilhar.
— Tivemos contato com um grupo há poucos
meses. Ofereceram ajuda e tentaram nos saquear na primeira oportunidade — o
homem falava com rancor estampado na voz. — Não cometeremos o mesmo erro.
— Eu sei que a luta pela sobrevivência
retira a nossa humanidade pouco a pouco, mesmo dos que não foram mordidos.
Permita que eu me apresente. — Deu um passo à frente, cauteloso. — Meu nome é
Charles e eu sou... bem... era, professor de química na universidade. Essa é
Joana. Trouxemos remédios e alguma comida, espero que isso ajude vocês e sirva
de prova de que não viemos para roubá-los.
Deixaram as bolsas no chão e se
afastaram. Apesar do rifle não estar apontado para ninguém, a tensão era
grande. O outro homem, gordo e de cabelos ruivos, avaliou a bolsa com extremo
cuidado.
— Comida e remédios — disse esboçando um
discreto sorriso. — Sou Pablo. Espero que entendam a nossa desconfiança, mas
quando se lida com a morte todos os dias, acabamos por esquecer o sentido de
estarmos aqui.
— Para que estamos aqui, Pablo? —
perguntou o outro homem, descrente.
— Hoje, para começar a virar o jogo
contra os zumbis, meu caro Samuel. — Olhava nos olhos do professor. — Amanhã,
para voltarmos a ser uma civilização.
— Viver o inferno todos os dias acaba
fazendo a gente se esquecer que nem sempre foi assim. Queremos ajudá-los. —
Samuel estendeu a mão para o professor. — Conte-me o plano de vocês e vamos
fazer acontecer.
Tiraram os recipientes das costas e
Charles entregou ao novo companheiro um caderno que trazia consigo.
— Essa é a pesquisa que realizei nos
últimos anos. Pode estudá-la mais tarde, se desejar. Mas agora precisamos
acessar o alto da caixa d’água e despejar nela esses galões. Essa quantidade é
suficiente para transformar todo o seu conteúdo em uma substância que vai
destruir de vez os mortos-vivos.
— Eu espero há três anos por essa
notícia — disse Samuel, esperançoso. — Temos mangueiras de bombeiro e um
sistema de liberação de água em alta pressão no alto da torre. Vamos fazer
chover em cima desses malditos.
— Pela última transmissão de rádio,
acredito que essa chuva só dure até o fim do dia. O plano, portanto, é preparar
a armadilha agora e aguardar o avanço dos zumbis amanhã.
O dia seguinte amanheceu com uma chuva
fina. Charles, Joana e Samuel se posicionaram no alto da torre. Pablo,
juntamente com outros sobreviventes do abrigo, permaneceu escondido, protegendo
as entradas do local.
No final da manhã, a chuva havia cessado
e os primeiros mortos-vivos começavam a vagar pelas ruas. O trio permaneceu
quieto até que o número de zumbis somasse algumas centenas. Foi quando
começaram a martelar as partes metálicas da torre, produzindo um som alto o
suficiente para chamar a atenção das criaturas.
Imediatamente uma multidão começou a
correr em sua direção, tentando escalar a construção, sem sucesso. Subiam nas
grades laterais da torre, mas o esforço não era suficiente para alcançar o
topo.
— Agora! — gritou o professor. — Abram
tudo!
Enquanto cada um apontava o jato para a
multidão enfurecida, o sistema de liberação de água da torre funcionava como um
imenso chuveiro, lançando o líquido em todas as direções e atingindo em cheio
os mortos-vivos, que subiam uns sobre os outros na tentativa de uma escalada,
como formigas que cooperam entre si na criação de uma ponte com os próprios
corpos.
O resultado não podia ter sido melhor. O
simples contato da água com os monstros agia como poderoso veneno. Todos
agonizavam em um último grito e caíam na sequência. O efeito morte parecia ser
instantâneo sobre as criaturas.
Quando a água cessou, os sobreviventes
pararam para observar o seu feito. Abaixo deles, uma multidão de mortos-vivos,
agora, definitivamente, mortos.
Algum tempo depois, enquanto todos
descansavam, exaustos, no abrigo do antigo shopping, uma tempestade teve
início. Minutos após a chuva atingir as criaturas atiradas no chão, uma delas
abriu os olhos. Depois outra e, na sequência, todas as demais. Começaram a se
levantar e, antes de correrem em direção ao acampamento, passaram as mãos sobre
os braços e rosto, como se tentassem entender o porquê de não mais sofrerem os
efeitos da chuva.
Horas mais tarde, à meia-noite, chegava
nova transmissão no rádio:
— Não sei se alguém me ouve. Apesar do
temporal que cai, os zumbis estão por toda parte. Não temos notícia de outros
sobreviventes. — Os chiados se misturavam a gritos de desespero no fundo, mas o
radialista mantinha certa calma. — Os zumbis não temem mais a água das chuvas.
Antes de ser interrompida, a transmissão
foi tomada por barulhos de madeira se quebrando e objetos caindo no chão. —
Eles nos encontraram. Meu Deus... eles estão aqui. — E nada mais se ouviu.
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