Catherine, a Condessa de Sangue
Catherine,
a Condessa de Sangue
Tiago da Costa
O
ar da cidade cheirava a pólvora e morte. As pessoas estavam tomadas pelo ódio e
sede de vingança, inflamadas pela liberdade que acreditavam ter conquistado.
Ainda era cedo para dizer se o mundo havia mudado para melhor. Era notório,
entretanto, que nunca mais seria o mesmo.
O
ano era 1789 e as ruas de Paris eram palco de uma transformação social sem
precedentes na história francesa. A Bastilha foi tomada há uma semana, e com a
sua derrubada, caíram também as grades imaginárias que protegiam o clero e a
nobreza dos braços cansados de uma população faminta. A invasão da maior prisão
do país ficou registrada na história como o evento que marcou o início da
Revolução Francesa.
Nobres
e sacerdotes, acostumados com séculos de regalias custeadas pelos impostos
pagos pelo povo pobre e pela burguesia, tentavam se proteger em seus palácios e
templos da fúria de uma população há séculos explorada. Diariamente, detentores
do poder na antiga estrutura do Estado perdiam suas cabeças na guilhotina.
Uma
convulsão social dessas proporções também trazia oportunidades para quem
conseguisse percebê-las. As cadeiras que caíam nos espaços de poder não
ficariam desocupadas por muito tempo, e Jean-Pierre Ribéry estava decidido a
aproveitar o caos que se instalava pelo país para subir na vida.
Acompanhado
por um grupo de dez homens armados, o revolucionário de ombros largos, olhos
claros e tranças pretas que chegavam à altura da cintura, cavalgava em direção
a uma mansão localizada a algumas horas da capital francesa, onde a Condessa
Catherine Château de Montagne residia na companhia de alguns empregados.
—
Sr. Jean-Pierre, nesse ritmo chegaremos ao nosso destino no final do entardecer
— disse um dos homens que, montado em um cavalo marrom escuro, puxava uma mula
que carregava mantimentos. — Vamos montar acampamento no caminho?
—
Não aconselho, senhores — respondeu enquanto estudava as nuvens escuras —, receio
que uma tempestade se aproxima. Acampar nessas condições não seria prudente.
Jean-Pierre
Ribéry era um sobrevivente. Filho de pais pobres que trabalharam por toda a
vida em uma fábrica têxtil, saiu de casa ainda jovem, disposto a arrancar do
mundo o que acreditava lhe pertencer. Conquistou algum dinheiro e influência
como caçador de recompensas, capturou fugitivos da lei, praticou alguns
assaltos e formou um bando. Enxergou na revolução que se iniciava a
oportunidade de ascensão que sempre almejou.
Naquela
manhã de outono e céu acinzentado, Jean-Pierre seguia com seu grupo em direção
à mansão da Condessa Catherine de Montagne, um alvo escolhido com cuidado. O
plano era invadir a casa, verificar se a condessa realmente não tinha nenhum
familiar, matar todos os moradores e tomar o imóvel. Em meio aos transtornos
que a França atravessava, ninguém se importaria com o extermínio de uma
linhagem de nobres sem grande influência.
O
sol começava a se pôr, pintando de laranja escuro o horizonte carregado de
nuvens, quando o grupo avistou a mansão no alto de um morro. A construção
impressionava pelo tamanho e beleza. Isolado, o imponente imóvel era cercado
por vinhedos, sem qualquer outra construção próxima em um raio de quilômetros.
Aparentando
ter dois andares, a mansão em estilo gótico tinha paredes de pedra em um tom de
azul profundo, quase preto. Exibia dezenas de janelas escuras e uma única porta
de madeira na frente, larga, com aproximadamente seis metros de altura. Atrás
de uma das vidraças do andar superior, um vulto parecia observar a chegada do
bando.
Quando
se aproximaram do portão, foi possível perceber que um homem já os aguardava.
Magro, pálido e mais alto que o normal, o sujeito tinha a expressão séria e não
demonstrava medo. Seus olhos eram pequenos e completamente negros. Percebeu
logo que Jean-Pierre falaria pelo grupo e se dirigiu a ele:
—
Boa noite, senhores — falava em um tom cortês, a voz baixa —, estão perdidos
por esses lados?
—
Meu caro, serei breve — respondeu descendo do cavalo e colocando a mão sobre a
garrucha que trazia na cintura —, o senhor bem sabe que a França está
explodindo nesse exato momento. As regras mudaram e viemos tomar essa
propriedade. Não vou repetir isso.
—
Receio que os senhores não vieram negociar — disse com um sorriso discreto,
fitando os olhos de Jean-Pierre. — A minha senhora costuma dizer que atitudes
precipitadas podem ter consequências irreversíveis. Não precisamos agir com
barbaridade. Sigam-me, por favor, antes de tomarem qualquer decisão drástica.
O
grupo atravessou o portão e percorreu um caminho de pedras bem encaixadas até
chegar na porta. A entrada na casa causou ainda mais espanto. O interior do
imóvel era muito maior do que se imaginava ao vê-lo por fora. O pé direito
tinha quase dez metros de altura, o piso em granito rosa, as paredes traziam
detalhes em pedra sabão e as cortinas de seda sobre as janelas eram de um tom
amarelo claro.
No
final da sala extensa, uma escadaria se abria em duas direções que levavam ao
andar superior. Chamavam atenção os móveis de madeira maciça, em especial a
mesa de doze lugares posicionada ao centro, no fundo da qual estava sentada uma
mulher.
—
Boa noite, cavalheiros — disse ao se levantar. — Não posso dizer que seja um
prazer recebê-los aqui, mas peço que sejamos razoáveis. Meu nome é Catherine, e
essa casa pertence à minha família há mais de quatro séculos. Aqui vivo em paz,
na companhia da minha equipe, tentando não chamar a atenção. O que exatamente
os senhores desejam?
—
Os tempos mudaram, Condessa — falou, sem se sentar, com o bando atrás dele. —
Meu nome é Jean-Pierre Ribéry e acredito que alguém na sua situação não consiga
mais passar despercebida aos olhos do povo. Os nobres estão sendo caçados por
toda a França, e nós viemos aqui para dar fim a essa história.
—
Qual seria a minha história? — Catherine caminhou em direção ao grupo,
encarando cada um dos homens. Seu olhar era seguro, firme, transparecendo que,
além de não sentir medo, detinha o controle da situação. A pele pálida, olhos
cor de mel, cabelos brancos, longos e ondulados, que pareciam dançar em um
movimento próprio. Uma mulher deslumbrante. — Conte-me o que acredita saber.
—
Condessa Catherine Château de Montagne — Jean-Pierre se aproximou ao falar,
tentando controlar calafrios que, sem saber o porquê, percorriam seu corpo —, a
senhora carrega títulos que não se sustentam mais. Essa casa já ficou em poder
de sua família por muito tempo. A senhora deve ser a quinta ou sexta geração de
nobres que usufrui de todo esse luxo. Hoje tudo termina — falou sacando uma das
pistolas da cintura.
Nesse
momento, os empregados estavam posicionados lado a lado, atrás da condessa.
Além do homem que os recebeu, outras sete funcionárias chegaram durante a
conversa, todas mulheres. Sérias, traziam um discreto sorriso no rosto, quase
imperceptível, e o olhar dilacerador de um predador que estudava a vítima.
—
Você se engana, Sr. Ribéry, ao pensar que conquistei tudo sem esforço — falou
passando os dedos sobre a mesa e encarando os oponentes, que transpiravam,
apesar da temperatura amena e da tempestade que chegava com a noite. — Muito
sangue foi derramado para que eu chegasse até aqui.
—
O que quer dizer? — a voz denunciava a preocupação, e o medo crescia a cada
passo dado pela condessa.
—
Você também se equivoca ao pensar que minhas gerações anteriores residiram
aqui. Minha família são as pessoas que vocês veem nesta sala. Eu — falou
elevando o tom de voz — moro aqui há mais de quatro séculos, meu caro
aventureiro.
Os
olhos de Catherine de Montagne foram tomados por um vermelho intenso e escuro.
Ela chegou a dois passos do seu interlocutor, passou as mãos abertas sobre as
maçãs do rosto, deu um sorriso largo e exibiu as enormes presas brancas. Os
empregados começaram a se espalhar pela sala como se estivessem escolhendo
alvos.
O
líder apontou a arma para o rosto da vampira, enquanto os demais sacaram suas
garruchas e espingardas, mas antes que pudessem atirar, a luz do lugar
desapareceu repentinamente. Mais que isso, um completo breu tomou conta de
tudo. Ninguém enxergava um palmo diante de si, o bando estava às cegas. Não se
tinha ideia da localização das portas e janelas, e o único som que se ouvia era
a chuva do lado de fora.
—
Mas em meio à sua sucessão de equívocos, Sr. Ribéry — a voz parecia vir de
todos os cantos da casa —, você acertou um ponto: essa história acaba agora.
Um
grito de desespero se sobrepôs ao som da tempestade. Barulho de ossos sendo
quebrados e carnes perfuradas. O cheiro de sangue tomou o ar. Ainda sem
enxergar nada, Jean-Pierre atirou. O silêncio abraçou a sala mais uma vez. O
lugar voltou a se iluminar por uma fração de segundo, o suficiente para o
atirador perceber que havia estourado a cabeça de um amigo, caído a sua frente.
Na sequência, tudo voltou a ser trevas, visibilidade zero.
Mais
tiros foram disparados. Os gritos se misturavam com pedidos de misericórdia,
até que cessaram. A escuridão se dissipou parcialmente e foi possível perceber
vultos movimentando-se rapidamente por todos os lados. Jean-Pierre havia
disparado com suas armas de mão e dado o único tiro da espingarda. Não havia
tempo para recarregá-las, então começou a correr pelos cantos da sala à procura
de alguma saída.
Percebeu
um corte profundo em uma das pernas e, tentando suportar a dor, começou a subir
as escadas, tropeçando e praticamente se arrastando. O ambiente ficou mais
claro, apenas uma penumbra tomava conta da casa naquele momento. O sobrevivente
olhou para baixo e avistou a condessa no meio da sala. Voltou sua atenção para
o segundo andar e, ao alcançar o último degrau, chocou-se com Catherine.
Como
é possível que ela tenha se movido nessa velocidade? pensou, acreditando que começava a
sofrer dos delírios que prenunciavam a morte.
O
homem se levantou com dificuldade e apoiou-se no guarda-corpo da escada. O
ambiente estava claro novamente. Espalhados pelo chão, os corpos dilacerados de
seus companheiros. Os empregados da mansão estavam ao redor da mesa, banhados
em sangue. Jean-Pierre encarou a condessa, aguardando pelo golpe de
misericórdia. Levou um tapa tão forte no rosto que caiu novamente. A julgar
pela dor lacerante e pelas unhas ensanguentadas de Catherine, sabia que o golpe
deixaria uma larga cicatriz.
—
O que são vocês? — perguntou, tentando conter o choro. — Agora compreendo por
que quase não há registros da Condessa Catherine Château de Montagne. Toda a
discrição se justifica.
—
Uma pena que a lucidez o tenha amparado apenas no momento final. O seu ciclo se
encerra aqui.
A
última visão de Jean-Pierre foi a vampira saltando sobre ele com as presas
expostas. Uma pantera lançando-se sobre o cervo no ataque derradeiro. Sentiu o
pescoço sendo perfurado, fogo correndo por suas veias, o corpo queimando, os
músculos paralisados e nada mais. A completa escuridão o abraçou novamente.
***
Dois
meses após o massacre, um grupo de aventureiros chegou novamente aos portões da
mansão. Um empregado os aguardava.
—
Boa noite, cavalheiros — cumprimentou o homem pálido, de longas tranças negras
e pequenos olhos escuros. — Estão perdidos por aqui?
—
Viemos de longe e não temos tempo a perder — disse o líder, montado em um
cavalo imponente. — Preciso falar com a Condessa Catherine Château de Montagne.
Desaconselho qualquer resistência da sua parte.
—
A minha senhora costuma dizer que atitudes precipitadas podem ter consequências
irreversíveis — disse, enquanto abria o portão. — Sigam-me por aqui.
—
Dispenso os seus conselhos, serviçal. Por um acaso essa marca que carrega na
face foi resultado de algum ato impensado? — perguntou debochado, despertando o
riso no restante do bando.
—
Certa vez, eu me arrisquei em um trabalho para o qual não estava preparado.
Desde então, carrego no rosto o resultado da minha prepotência.
—
À propósito, qual o seu nome, pobre homem?
—
Pode me chamar de Jean-Pierre.
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